Os deputados do PSD decidiram na passada sexta-feira que se
devia realizar um referendo sobre a coadoção por casais do mesmo sexo. A
história é simples e deve ser contada por partes. Primeiro, a coadoção. Depois,
o referendo.
Há ano e meio o PS apresentou um projeto de lei para
permitir que, quando um dos elementos do casal tenha um filho biológico ou
adotado, o outro elemento possa coadotá-lo. Isto significa passar a ser
legalmente pai ou mãe da criança em causa. Com todos os direitos. E com todos
os deveres. Passar a ser legalmente pai ou mãe e não substituir legalmente pai
ou mãe. Pois a coadoção só seria possível se não houvesse nenhum pai ou mãe
para substituir. Se houvesse, não poderia haver coadoção.
A ideia surgiu porque há crianças nesta situação. Crianças
que estão há anos a ser educadas por casais de pessoas do mesmo sexo. E que, se
o pai ou a mãe biológicos ou que adotaram morrerem, podem ser retiradas à sua
família. O que não sucederia se se tratasse de um casal com pessoas de sexo
diferente, onde poderia haver coadoção. Portanto, esta lei queria resolver
casos concretos, tratar de situações concretas, ajudar pessoas concretas. É
raro, mas de vez em quando acontece, era uma lei para pessoas. Ou melhor, uma
lei para famílias.
No fundo, a lei pretendia remover a orientação sexual como
um factor discriminatório para negar a adoção nestes casos. Porque é mesmo isso
que se trata: assegurar que, numa situação terrível, as crianças continuam a
crescer na sua família. Onde estão a ser educadas sem problemas nem alarme
social. Esta discriminação não faria (e não faz) qualquer sentido. Nem sequer é
legalmente defensável. Daí que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tenha,
há cerca de um ano, condenado a Áustria por não permitir a coadoção a casais do
mesmo sexo. Exatamente o que a lei portuguesa viria agora permitir.
Mas não se pense que a coadoção seria automática e sem
controlo. Tal como numa coadoção de um casal de pessoas de sexo diferente, a
criança com mais de 12 anos teria que dar o seu consentimento e a coadoção
teria que ser declarada por um Tribunal. O que permitiria analisar seriamente
cada situação. A conclusão é que a lei proposta era ponderada, equilibrada,
justa e, mais cedo ou mais tarde, teria que ser aprovada em Portugal. Nem que
fosse através da condenação de Portugal pelo Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, como sucedeu na Áustria.
Já sabemos de onde surgiu a ideia da coadoção. Agora, temos
que saber quando nasceu a ideia do referendo. Não nasceu no início do processo,
quando foi apresentado o projeto de lei. Não nasceu quando foram recolhidos
pareceres científicos sobre o assunto, favoráveis à coadoção. Não nasceu quando
o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou a Áustria por não admitir
coadoção para estes casos. Não nasceu quando se gerou um consenso no Parlamento
para aprovar o projeto de lei. Nasceu quando se aprovou o projeto de lei na
generalidade, na primeira votação que houve sobre o assunto no Parlamento. Ou
seja, nasceu quando se temeu que a lei pudesse ser aprovada. E com o único
objetivo de impedir essa aprovação.
É por isso que o referendo que foi aprovado é tão confuso,
ilegítimo e cobarde. Confuso porque tem duas perguntas diferentes. Uma para a
coadoção, para as famílias que já existem. E outra para a adoção, para famílias
que não existem. São matérias diferentes que não podem ser tratadas de maneira
igual e embrulhadas no mesmo referendo. Discutir se duas pessoas do mesmo sexo
podem adotar uma criança institucionalizada não é a mesma coisa que discutir a
coadoção de uma criança que já tem uma família. Aliás, o mais provável é estas
duas perguntas conjuntas não serem admissíveis segundo a lei do referendo.
Ilegítimo porque não é um assunto que exija a realização de
um referendo. Não há posições extremadas, nem um debate público aceso. Não que
esse seja o critério para haver referendos. Mas, os referendos, pela sua
natureza de apenas aceitarem um sim ou um não, são perigosos e prestam-se a
discussões demagógicas. E, por isso, justifica-se que apenas haja referendos de
questões verdadeiramente discutidas. Como foi o caso da interrupção voluntária
da gravidez ou da regionalização. Mas mais. Realizar um referendo sobre
situações concretas, sobre famílias concretas, é mais do que ilegítimo. É
imoral.
Acima de tudo, é o mais cobarde dos referendos. Cobarde
porque foi apenas um estratagema inventado para evitar a aprovação de uma lei.
Não se viu nenhuma discussão parlamentar sobre o assunto. Não se ouviram
argumentos contra. Não se fez a votação final da lei da coadoção. Era nesta
votação que quem era contra a coadoção se podia levantar e explicar as suas
razões. É para isso que serve o Parlamento. Para discutir e para falar em
representação dos eleitores. Não para devolver a palavra a esses eleitores
porque dá jeito para impedir uma lei que, em circunstâncias normais, seria
aprovada.
Mas a maior cobardia é mesmo utilizar um assunto sensível
para algumas famílias para se poderem exibir credenciais impecáveis e
direitinhas a favor da família. Não destas famílias reais e concretas. Mas das
famílias ideais e imaginadas. Foi fácil. Bastou pôr as convicções à porta do
Parlamento. Bem fechadas num cacifo para saírem cá para fora quando passar a
borrasca e for apropriado. Abstenções, declarações de voto acompanhadas da
votação a favor do referendo, saídas do hemiciclo no momento da votação e alegações
que o referendo é caro, não chegariam aos calcanhares de um único deputado que
se tivesse levantado e dito que era contra a coadoção. É que, enquanto este
teria as suas razões, aos outros, nem as razões lhes pertencem.
20 de janeiro de 2014
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