Cavaco
finalmente falou. Durante 20 minutos. Em voz pausada e ponderada. Com o mesmo
ar professoral de sempre. Com o mesmo ar convencido em relação a cada palavra.
E com a mesma forma pouco convincente que o caracteriza. Cavaco foi
contraditório como nunca. Cavaco foi Cavaco como sempre. Ordenou sem parecer
ordenar. Ameaçou sem parecer ameaçar. Exigiu sem parecer exigir.
Cavaco
tinha dois caminhos. Podia dar posse novamente a Passos e Portas em segunda e
piorada versão. Ou podia demitir o Governo. Cada um dos caminhos excluía o
outro. Mas para Cavaco não há impossíveis. Nem enganos, nem dúvidas. E assim
resolveu alegremente seguir os dois. Continuar com Passos e Portas, mas
demitindo-os esperando que o suave milagre da salvação nacional aconteça. O
Governo fica demitido. A remodelação fica cancelada. E o PS poria um pé dentro
do barco para que um qualquer Governo empoleirado neste tripé partidário
conseguisse fazer o corte de € 4,7 mil milhões exigido pela Troika.
Este
plano febril tem três problemas. Primeiro: com um país exaurido e no meio de um
ciclo de governação, é impossível qualquer entendimento alargado. Se PSD e CDS
se dão tão mal ao ponto de se perceber agora que não há Governo há alguns
meses, não se percebe como poderá haver estabilidade adicionando o PS. Segundo:
Cavaco perdeu autoridade e prestígio para impor qualquer solução deste tipo.
Por uma razão simples, ajudou este Governo a ser eleito. Não se percebe que
agora o enjeite com desdém. Terceiro: a humilhação sem demissão de Passos e
Portas, que pavonearam um novo Governo durante quase uma semana e levou Portas
a vistoriar palácios, só podia ter uma resposta: ficarem exactamente onde
estão, sem se demitirem.
O
debate parlamentar de ontem era para ser sobre o estado da nação. Há muito para
discutir. A demissão de Gaspar e esta aventura de Cavaco pelo desconhecido
fazem crer que as contas públicas devem estar num estado mais que preocupante.
Ou então discutir o que causou a implosão do Governo: o corte de € 4,7 mil
milhões prometido à Troika e que já se percebeu que não se consegue fazer. Pelo
menos, nestes prazos e nestes termos.
No
entanto, o que aconteceu nem sequer debate foi. Todos concordaram com Cavaco e
disseram que queriam negociar. Todos desobedeceram a Cavaco e fizeram o que bem
entenderam. Passos declarou que queria cumprir a legislatura até ao fim. Portas
encerrou o debate com uma citação irrevogável de Sá Carneiro a prometer que
fica pela pátria. E Seguro proclamou que não abdica de eleições antecipadas.
Deve ter sido por esta desobediência que Cavaco sentiu necessidade de emitir
comunicado a meio do dia, ordenando que as negociações se fizessem num prazo
curto. Vão-se fazer, certamente. Sem garantir um Governo estável, seguramente.
Mais
cedo ou mais tarde, teremos um Governo que não esteja suspenso. Mais cedo ou
mais tarde, depois desta demissão velada, este Governo cairá. Mais cedo ou mais
tarde, haverá eleições. Cavaco limita-se a hesitar. Quando precisávamos de um
decisor, saiu-nos um agitador. Pode ser que a Troika perceba que chegámos ao
limite.
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