Francisco.
Francesco. A diferença é uma letra. E uma certa pronúncia. Embora ambas sejam
latinas. O primeiro, ainda o vemos por aí. De cara desfeita e alma pesada. A
rondar os cinquenta anos. Cinquenta e dois para ser exacto. Do segundo, já não
nos lembramos bem. Talvez reconheçamos a face imaculadamente barbeada e o
bronze de navio. A rondar os cinquenta anos. Cinquenta e dois para ser exacto.
Francisco José Garzon, o maquinista do comboio que se descarrilou perto de
Santiago de Compostela. Francesco Schettino, o capitão do navio Costa
Concordia, que se afundou perto de uma ilha italiana o ano passado.
Já
se sabe quase tudo sobre o naufrágio do Costa Concordia. Há dois meses foi
publicado o relatório do organismo italiano responsável por investigar
desastres marítimos. São 180 páginas de um inglês com ritmo italiano que não
deixa grandes dúvidas. O navio aproximou-se demasiado da costa de uma pequena
ilha, desviando-se da rota sem motivo válido, e uma sucessão de erros humanos
fez o resto. Há de tudo: cartas náuticas na escala errada, não verificação da
distância da costa, presença de estranhos na ponte de comando que provocaram
distracções várias, e até Francesco Schettino sem óculos de ver ao perto para
conseguir ler o radar. A conclusão é que o naufrágio se deveu exclusivamente a
falhas humanas. Schettino, acusado de homicídio por negligência, já reconheceu
a sua culpa.
Ainda
não se sabe quase nada sobre o descarrilamento do comboio de alta velocidade na
Galiza. A curva que matou devia ser feita a 80/Km hora. Mas o comboio entrou na
curva a 190 e saiu dos carris com violência. Ontem, perante um juiz, Garzon
reconheceu que não sabia onde estava, que não sabia que curvas fazia. Parece
que, antes de chegar a Santiago, há 31 túneis e 38 viadutos em menos de 100
Km., o que pode desorientar. Mas Garzon não se queixou da via nem do estado do
comboio. Quando se abrirem as caixas negras, poderemos saber melhor o que se
passou. Até porque a prática habitual é começar a travar quatro Km. antes da
curva, conforme manda o livro horário, uma espécie de manual de velocidades que
deve ser permanentemente consultado durante o trajecto. Impressiona como é que
uma curva tão apertada e tão súbita não tem um redutor automático de velocidade.
Impressiona como é que o sistema mais avançado de controlo de velocidade acaba
pouco antes da curva, onde era mais necessário. Impressiona como é que um
comboio de alta velocidade podia estar dependente de uma pessoa só.
Os
dois terão os seus julgamentos. É aí que se decidem os seus crimes, as suas
culpas e os seus castigos. Os dois casos são diferentes. Se Schettino se
escapuliu para terra firme assim que pôde, provocando ordens furiosas da
capitania local para regressar a bordo do navio, Garzón assumiu a sua falha
humana com uma dignidade que nem todos teriam. Ambos trazem mortos nas pontas
dos dedos. O mais provável é que ambas as negligências mortais sejam punidas.
A
negligência é falta de cuidado. Descuido, passividade, desleixo. Tanto de um
capitão na ponte de comando rodeado de radares e instrumentos técnicos. Como
talvez do maquinista que conduz mais de metade do caminho a alta velocidade com
garantia que o comboio pára se houver algum problema. Tanta tecnologia, faz
parecer estes acidentes aberrantes. Mas são também um pouco a sua causa. A
muito humana acomodação e confiança em tanta técnica torna-nos mais
descuidados, passivos, desleixados. Não se trata de uma desculpa de Schettino e
talvez de Garzon. É mais um aviso para a nossa crescente dependência técnica
que nos diz onde estamos, com quem estamos, do que gostamos, donde vimos, para
onde vamos, o que partilhamos e quase o que somos. A tecnologia que nos embala,
mas que não nos substitui. E que não resiste a erros humanos sucessivos.
Somos
magnificamente humanos. Somos estupidamente humanos. Ou, simplesmente, como
disse Garzon em pânico minutos depois do descarrilamento, somos apenas
humanos.
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