Portugal
não tem embaixada no país mais pobre da América do Sul. As funções são
asseguradas pela embaixada portuguesa em Lima, no Peru. Temos dois consulados
honorários. Um em La Paz, a capital não oficial a mais de 3.600 metros de
altitude, onde os taxistas são sósias de Evo Morales e mascam folha de coca com
à vontade, e outro em Santa Cruz, na parte oriental do país, onde os taxistas
são tão brancos, calvos e rotundos como em qualquer pacata cidade andaluza. Não
temos relações. Aliás, Portugal vende mais para qualquer país que faça
fronteira com a Bolívia: Argentina, Chile, Paraguai, Peru e, naturalmente, o
Brasil (INE Janeiro-Abril 2013). A Bolívia não compra. Logo, a Bolívia não
conta.
Até
onde as notícias nos permitem perceber, entre desmentidos e comunicados
lacónicos, o Presidente, da Bolívia, Evo Morales, foi impedido de seguir viagem
pelo espaço aéreo de França, Itália, Espanha e Portugal quando regressava de
uma viagem oficial à Rússia para uma cimeira de países produtores de gás.
Suspeitava-se que Snowden, o ex-funcionário contratado da NSA, a agência de
vigilância externa dos EUA, estivesse a bordo. Diligentemente, Portugal proibiu
o avião de Evo Morales de fazer uma escala técnica em Lisboa que já tinha sido
previamente autorizada. Mas até fomos mais longe: proibimos o avião
presidencial boliviano de sobrevoar o espaço aéreo português. Desde 1945 que
nenhum pais proibia um avião presidencial de outro país de sobrevoar o seu
território. Não se diga que não gostamos de participar em feitos inéditos.
Relações
internacionais. Globalização. Diplomacia. Descolonização. Dimensão atlântica da
política externa. Sujeitos de Direito Internacional. Princípio da imunidade dos
Estados. Fenómenos migratórios. Competitividade e crescimento. Exportações.
Estes são apenas alguns dos temas dos exames para quem quer ser diplomata e que
constam do regulamento do último concurso de acesso a esta carreira. À primeira
vista, parece que não há nada relacionado com aceder a pedidos que violam
princípios básicos de Direito Internacional. Mas devo ter visto mal.
Ou
não. Uma das linhas da política externa portuguesa que se encontra trabalhada
com afinco é mesmo esta: o acriticismo. Nas suas duas vertentes, atlântica e
europeia. Consiste simplesmente em obedecer a todos os pedidos que nos façam e
em querer fazer sempre mais do que nos pedem. Proibir escalas técnicas?
Acrescentamos nós, proibir o sobrevoo do espaço aéreo também. Muito gostamos de
ir mais além. De estar mais além. Em memorandos e em voos presidenciais
alheios. O acriticismo não se estuda, aprende-se todos os dias.
Sabemos
pouco da Bolívia. Não temos obrigação de saber muito. Mas tínhamos obrigação de
saber o mínimo. De saber, por exemplo, que o poder é volátil como uma aragem
nestes dias infernais e que, desde 1825, houve quase uma centena de Governos,
muitos deles sem serem oficiais. Os historiadores nem sequer estão de acordo
sobre o número de golpes militares tentados. E devíamos pelo menos saber que
Evo Morales foi eleito duas vezes de forma democrática e que, desde 2006, que a
Bolívia conhece um raro período de estabilidade. Não se trata de apoiar Evo
Morales. Trata-se de respeitar Evo Morales. E os bolivianos. É sempre mais
fácil obedecer quando a Bolívia tem mais de 50% da população a viver abaixo do
limiar da pobreza e não tem nenhum peso nas nossas relações comerciais.
A
embaixadora portuguesa que reside no Peru teve ontem que comparecer na sede do
Governo boliviano para explicar o sucedido. Lá fora, em La Paz, queimavam-se
bandeiras desse símbolo do imperialismo, Portugal. O demissionário Ministro
Portas tem hoje que comparecer no Parlamento para explicar o sucedido. Ambos
disseram ou dirão o mesmo em cuidada linguagem diplomática, tudo se terá devido
a razões técnicas, que a técnica tem razões que a própria técnica desconhece.
Entretanto, a União das Nações Sul Americanas, que ambiciona ser uma União
Europeia, e onde estão todos os países da América do Sul, já exigiu contrição
portuguesa e dos restantes países envolvidos. Portugal passa a ter mais um
cartão de visita na região.
Não
faz parte dos temas de estudo dos futuros diplomatas. Nem parece que o novo
Ministro dos nossos negócios no estrangeiro perca muito tempo a pensar no
assunto. Mas talvez devêssemos substituir o acriticismo por outra coisa
qualquer. Algo como o respeito pelo Direito Internacional e pelos Estados
democráticos. Sobretudo, quando isso é mesmo possível sem que a realidade nos
caia em cima da cabeça.
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