2 de maio de 2014

Cronista em greve

No uso do direito previsto na Constituição, enquanto ainda existe, declaro greve ao comentário, à observação, à interpretação e até à ironia. A razão é que a realidade, como ela é, começa a dispensar comentários, observações, interpretações e até ironias. E quando a realidade começa a não precisar de enquadramento, o cronista empenhado fica sem ofício. No fundo, é apenas mais um episódio da progressiva substituição de trabalhadores qualificados por processos automatizados. Só que, neste caso, é a força das coisas que expulsa o cronista. Se a realidade fala de forma tão cristalina, só resta ao cronista enfiar o comentário no saco. Portanto, farei greve até que a realidade se acalme.
Três exemplos. Ainda esta semana, no dia de aniversário do cronista (a realidade não tira férias), Eanes foi homenageado por um grupo de saudosistas das virtudes éticas do político que não quis ser marechal e que abdicou de um milhão em retroativos que lhe eram devidos. Não tenho a mais pequena das dúvidas sobre a seriedade, honestidade e dedicação de Eanes. Tenho todas as dúvidas sobre o percurso político de Eanes. Foi Eanes que foi formando sucessivos e falhados governos de iniciativa presidencial, desvirtuando o carácter parlamentar do regime. Mas também foi Eanes que embalou o Conselho da Revolução, verdadeiro órgão militar que vigiava o Governo, e que só foi extinto em 1982. E foi Eanes Presidente que inspirou, fundou e acarinhou um partido político, como se a presidência da república servisse para criar partidos. Homenagear Eanes pelo que ele é e não pelo que fez enquanto político diz muito sobre os tempos que vivemos. Os políticos já não servem. Ou, em ligeira variação, as ideias já não contam. Quando ansiamos por homens sérios sem prestar atenção ao que eles defendem, estamos próximos de desejar homens providenciais, não importando em que acreditam. Cá está a realidade a entrar sem pedir licença e a mandar o cronista dar uma volta.
Discute-se o salário mínimo. E nas palavras do realista César das Neves, um possível aumento do salário mínimo é prejudicial aos verdadeiros pobres, aqueles que não estão representados pelos políticos. A ideia é que a mínima subida do salário mínimo irá impedir que se criem novos postos de trabalho, pois o empregador não consegue suportar esses custos. E também que o salário mínimo tem vindo a aproximar-se do salário médio, o que é prejudicial para o mercado de trabalho no seu conjunto. Há quem defenda que seria até mais eficiente atribuir subsídios como complemento do salário mínimo para não desvirtuar o mercado de trabalho. O problema é que a sacana da realidade parece apontar outra direção. Na Alemanha, Merkel, o expoente máximo da esquerda europeia, acaba de aceitar o salário mínimo para os trabalhadores alemães com o valor de cerca de € 1440/mês. Parece que, em 2012, havia na Alemanha oito milhões de trabalhos precários pagos em valores semelhantes aos do salário mínimo português (€ 485/mês). Não parece que Merkel queira condenar oito milhões de pessoas ao desemprego. Mas viajemos para a Bélgica, onde o Primeiro-Ministro afirmou esta semana que há portugueses a trabalhar na Bélgica e a ganhar um salário mensal de € 346, bem abaixo do salário mínimo em Portugal. Defendeu que esses salários eram inaceitáveis. Mas disse mais. Disse que salários tão baixos põem em causa a própria economia belga que, naturalmente, não quer estar baseada em salários tão baixos. Alemanha e Bélgica, dois países pouco civilizados, como se sabe, ousam contrariar as impecáveis doutrinas económicas sobre o salário mínimo. As notícias falam por si, o cronista pode ir relaxar para outra banda. 
Debateu-se com elevação e argumentos onde é que a austeridade foi mais agressiva, se em Portugal, se na Irlanda. João Miguel Tavares e Hugo Mendes trocaram argumentos, quadros, gráficos e ideias. Creio que Hugo Mendes conseguiu provar com boas justificações que em Portugal, em apenas três anos, houve uma austeridade de € 24 mil milhões. E que na Irlanda, em cinco anos, houve uma austeridade de €28 mil milhões. E que a austeridade é pior em Portugal porque a economia portuguesa é mais dependente da procura interna, enquanto a economia irlandesa é mais aberta ao exterior. Claro que a Irlanda não ter embarcado em viagens para além da Troika também ajudou. Esta discussão continuou e passou subtilmente para outra dimensão: que país, Portugal ou Irlanda, é que estava melhor preparado para sofrer austeridade em 2007? E por aqui se continuou alegremente. Não duvido que seja importante perceber este ponto. Mas já não se fala é do ponto essencial: a Irlanda reestruturou a sua dívida. Isso mesmo. Cerca de 28 mil milhões de dívida. Que antes tinham juros de 8% e agora passaram a ter de 3%. E em que o primeiro grande pagamento só terá lugar em 2038 e o último em 2053. Perante isto, que pode comentar o cronista quando o Governo defende com todo o vigor que nunca, jamais, em tempo algum poderá haver uma reestruturação da dívida portuguesa?

29 de novembro de 2013

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