No uso do
direito previsto na Constituição, enquanto ainda existe, declaro greve ao
comentário, à observação, à interpretação e até à ironia. A razão é que a
realidade, como ela é, começa a dispensar comentários, observações,
interpretações e até ironias. E quando a realidade começa a não precisar de
enquadramento, o cronista empenhado fica sem ofício. No fundo, é apenas mais um
episódio da progressiva substituição de trabalhadores qualificados por
processos automatizados. Só que, neste caso, é a força das coisas que expulsa o
cronista. Se a realidade fala de forma tão cristalina, só resta ao cronista
enfiar o comentário no saco. Portanto, farei greve até que a realidade se
acalme.
Três exemplos.
Ainda esta semana, no dia de aniversário do cronista (a realidade não tira
férias), Eanes foi homenageado por um grupo de saudosistas das virtudes éticas do
político que não quis ser marechal e que abdicou de um milhão em retroativos
que lhe eram devidos. Não tenho a mais pequena das dúvidas sobre a seriedade,
honestidade e dedicação de Eanes. Tenho todas as dúvidas sobre o percurso
político de Eanes. Foi Eanes que foi formando sucessivos e falhados governos de
iniciativa presidencial, desvirtuando o carácter parlamentar do regime. Mas
também foi Eanes que embalou o Conselho da Revolução, verdadeiro órgão militar
que vigiava o Governo, e que só foi extinto em 1982. E foi Eanes Presidente que
inspirou, fundou e acarinhou um partido político, como se a presidência da
república servisse para criar partidos. Homenagear Eanes pelo que ele é e não
pelo que fez enquanto político diz muito sobre os tempos que vivemos. Os
políticos já não servem. Ou, em ligeira variação, as ideias já não contam.
Quando ansiamos por homens sérios sem prestar atenção ao que eles defendem,
estamos próximos de desejar homens providenciais, não importando em que
acreditam. Cá está a realidade a entrar sem pedir licença e a mandar o cronista
dar uma volta.
Discute-se o
salário mínimo. E nas palavras do realista César das Neves, um possível aumento
do salário mínimo é prejudicial aos verdadeiros pobres, aqueles que não estão
representados pelos políticos. A ideia é que a mínima subida do salário mínimo
irá impedir que se criem novos postos de trabalho, pois o empregador não
consegue suportar esses custos. E também que o salário mínimo tem vindo a
aproximar-se do salário médio, o que é prejudicial para o mercado de trabalho
no seu conjunto. Há quem defenda que seria até mais eficiente atribuir
subsídios como complemento do salário mínimo para não desvirtuar o mercado de
trabalho. O problema é que a sacana da realidade parece apontar outra direção.
Na Alemanha, Merkel, o expoente máximo da esquerda europeia, acaba de aceitar o
salário mínimo para os trabalhadores alemães com o valor de cerca de €
1440/mês. Parece que, em 2012, havia na Alemanha oito milhões de trabalhos
precários pagos em valores semelhantes aos do salário mínimo português (€
485/mês). Não parece que Merkel queira condenar oito milhões de pessoas ao
desemprego. Mas viajemos para a Bélgica, onde o Primeiro-Ministro afirmou esta
semana que há portugueses a trabalhar na Bélgica e a ganhar um salário mensal
de € 346, bem abaixo do salário mínimo em Portugal. Defendeu que esses salários
eram inaceitáveis. Mas disse mais. Disse que salários tão baixos põem em causa
a própria economia belga que, naturalmente, não quer estar baseada em salários
tão baixos. Alemanha e Bélgica, dois países pouco civilizados, como se sabe,
ousam contrariar as impecáveis doutrinas económicas sobre o salário mínimo. As
notícias falam por si, o cronista pode ir relaxar para outra banda.
Debateu-se com
elevação e argumentos onde é que a austeridade foi mais agressiva, se em Portugal,
se na Irlanda. João Miguel Tavares e Hugo Mendes trocaram argumentos, quadros,
gráficos e ideias. Creio que Hugo Mendes conseguiu provar com boas
justificações que em Portugal, em apenas três anos, houve uma austeridade de €
24 mil milhões. E que na Irlanda, em cinco anos, houve uma austeridade de €28
mil milhões. E que a austeridade é pior em Portugal porque a economia
portuguesa é mais dependente da procura interna, enquanto a economia irlandesa
é mais aberta ao exterior. Claro que a Irlanda não ter embarcado em viagens
para além da Troika também ajudou. Esta discussão continuou e passou
subtilmente para outra dimensão: que país, Portugal ou Irlanda, é que estava
melhor preparado para sofrer austeridade em 2007? E por aqui se continuou
alegremente. Não duvido que seja importante perceber este ponto. Mas já não se
fala é do ponto essencial: a Irlanda reestruturou a sua dívida. Isso mesmo.
Cerca de 28 mil milhões de dívida. Que antes tinham juros de 8% e agora
passaram a ter de 3%. E em que o primeiro grande pagamento só terá lugar em
2038 e o último em 2053. Perante isto, que pode comentar o cronista quando o
Governo defende com todo o vigor que nunca, jamais, em tempo algum poderá haver
uma reestruturação da dívida portuguesa?
29 de novembro de 2013
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