Perdemos o valor das palavras todos os dias. Vivemos
demasiados acontecimentos históricos e demasiados acontecimentos trágicos.
Quando a tragédia surge, repetimos automaticamente que sim senhor, que foi uma
tragédia. E seguimos em frente. Afinal, feitos históricos e tragédias trágicas
estão ao virar de cada esquina. Mas naquela madrugada de dezembro foi mesmo uma
tragédia que aconteceu. Seis estudantes morreram debaixo de uma onda no Meco.
Nem se sabe bem ainda como nem porquê.
Sabe-se apenas que estavam de fim-de-semana praxista. Com
flexões, pedras, capas negras e a colher de pau da praxe. Sobre a praxe não há
muito a dizer. Não integra, não envolve, não ajuda. É coisa simples e só tem
uma regra: o mais forte dispõe do mais fraco para rituais humilhantes. E nem é
o mais forte, é o mais antigo, que a idade é um posto e devemos todo o
respeitinho a quem anda cá há mais tempo. Afinal, a praxe até prepara para a
vida, ensina que devemos obedecer aos mais velhos porque são mais velhos. Sem
interrogar, sem questionar e sem duvidar. Aprende-se hoje que uma capa, uma
batina e um qualquer título arraçado do latim dão carta-branca para abusos.
Amanhã será um qualquer chefe engravatado que não se pode pôr em causa pela
simples razão que não se pode pôr em causa. É a aprendizagem do conformismo e
da submissão.
Há quem veja nas ondas do Meco um sinal de que temos poucas
alternativas para quem quer construir a sua identidade e a pertencer a algo
maior. E que não restaria muito mais do que embarcar num mundo de trajes
negros, códigos secretos, alcunhas e objetos simbólicos. É verdade que a nossa
vida coletiva é cínica e desdenhosa. Não valorizamos quem faz parte de uma
juventude partidária ou quem é membro de uma organização religiosa que presta
serviço comunitário. Preferimos a bazófia individual ao empenho coletivo. Mas
também é verdade que rituais praxistas abusadores, detalhados e secretos estão
muito para além de qualquer identidade saudável que se possa construir.
Há quem veja nas ondas do Meco um linchamento dedicado da
única pessoa se sabe ter estado na praia naquela noite. Todas as teorias,
suposições e deduções que circulam diariamente seriam uma variante de um novo
abuso. As seis mortes seriam, quase de certeza, um resultado acidental. Um
ritual estúpido para mortes estúpidas. Não valeria a pena vasculhar mais.
Quando a morte de seis estudantes debaixo de uma onda é tratada com esta
ligeireza, temos que pensar se devemos escolher cuidadosamente as circunstâncias
em que morremos por acidente. Só assim teremos a certeza que, depois de
estarmos mortos, se buscam esclarecimentos.
E assim chegamos aos esclarecimentos da tragédia que
aconteceu há mais de mês e meio. Desde o primeiro dia que é evidente que tudo teria
que ser investigado ao mais ínfimo detalhe. Numa fria madrugada do dia 15
dezembro do ano passado, morreram seis pessoas numa praia com ondas enormes. Só
isto bastava. Mas, em Portugal, o que basta nunca é suficiente. O Ministério
Público, que devia investigar, demorou mais de um mês para se organizar. Só a
21 de janeiro é que a investigação ficou com a pessoa certa dentro do
Ministério Público. E só agora se criou essa exuberância burocrática que dá
pelo nome de equipa mista entre a Polícia Judiciária, Polícia Marítima,
coordenada pelo Ministério Público. Quanto mais membros da equipa, menos
responsabilidades existem por atrasos. Está certo.
O problema deste caso é o mesmo de sempre. Deixar que o
julgamento de um eventual crime (que pode nem existir) se faça nos jornais e
por pressão popular. Deixar que se façam leituras apressadas de acontecimentos
graves. Deixar que os absurdos burocráticos tornem irrespirável a nossa vida
coletiva. Onde era preciso uma investigação rápida e conclusiva, temos sucessivas
notícias nos jornais com insinuações não provadas e fugas selecionadas de
elementos da investigação. O que as ondas do Meco nos dizem é que se morre mal
em Portugal.
31 de janeiro de 2014
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