Eusébio deu-nos muito. Mais do que
lhe demos a ele. Eusébio deu-nos glória. Uma glória popular e genuína. Para
todos. Não é pouco. E não espanta. Se ainda hoje quase não temos tradições
desportivas, quanto mais nos anos 60. Só a equitação e a vela davam medalhas
olímpicas por essa altura e até uns anos mais tarde. Equitação e vela,
desportos caros e elitistas. Eusébio era outra coisa. Falava uma linguagem que
todos compreendiam e podiam tentar imitar. A linguagem da bola de trapos com
que ele começou a falar no bairro miserável onde cresceu em Moçambique. E foi
com uma simples bola que foi o herói desportivo de classe mundial que nunca
tínhamos tido.
Deu-nos um imenso orgulho.
Completo, esvoaçante, veloz, atlético. Sem nunca desistir. O terceiro lugar no
Mundial de 1966 quase que sabe a primeiro por isso. Por não nos termos
impressionado com o Brasil de Pelé. Por termos virado o jogo com a Coreia do
Norte marcando cinco golos. Por Eusébio ter saído do campo a chorar quando
perdemos com a Inglaterra nas meias-finais. E por termos derrotado a temível
União Soviética e, provavelmente, o melhor guarda-redes de todos os tempos,
Yashin, no jogo para o terceiro lugar. É acrescentar uma Taça dos Campeões
Europeus pelo Benfica e mais três perdidas. Ou o prémio do melhor jogador da
Europa e ter sido duas vezes o melhor marcador europeu. Eusébio era o futebol
em Portugal até há muito pouco tempo.
Se era o futebol em Portugal, no
resto do mundo Eusébio era Portugal. Não esqueço o que me aconteceu há uns 15
anos numa estação de comboios perdida no leste da Hungria. Quando o chefe da
estação de comboios, e único funcionário, soube que eu era português, a
resposta foi Eusébio. Sem mais palavras. Tinha-o visto jogar. Lembrava-se.
Melhor que Pelé, dizia. Melhor que muitos dos da altura, acrescentava. Um
grande, sentenciava.
Há quem diga que perdemos com a
partida de Eusébio. Perdemos quando os talentos geniais se desperdiçam e não
passam da sombra. Com Eusébio, ganhámos. Todos. Eusébio não cumpriu apenas.
Eusébio superou tudo. A si e a todos. E foi o menino pobre de uma das colónias
portuguesas que foi o melhor jogador africano de todos os tempos, como
declarava ontem o obituário do jornal inglês Guardian. Demos-lhe muito. Havia
uma admiração imensa por Eusébio. Das duas vezes que me cruzei com ele, pude
ver toda a deferência que o rodeava, a amabilidade portuguesa quase tímida com
que todos falavam com ele.
Mas não demos o suficiente. Eusébio
devia ter podido sair do país no auge. Eusébio devia ter podido enriquecer onde
quisesse. Eusébio devia poder ter chegado, se calhar, ainda mais longe. Eusébio
não devia ter sido usado e abusado por um regime político. Eusébio, o mulato
moçambicano, foi convertido em símbolo de uma pretensa harmonia racial
excepcional que só havia em Portugal. Isto no país que só em 1961 aboliu leis
específicas para os habitantes das colónias que, até então, não eram bem
cidadãos e que mantinha uma segregação racial semelhante à dos outros países
colonizadores. E no país que até hoje não tem um deputado negro. Ficámos a
dever a Eusébio uma vida mais livre. Não é pouco. É mesmo muito.
O King morreu. Viva o King. Trágico
seria que o Rei tivesse partido sem deixar descendentes. Mas deixou. Houve
vários que tentaram. Mas só um é que é verdadeiro e da mesma ordem de grandeza.
A mesma vontade de ganhar, a mesma luta até ao último segundo, a mesma alegria
em cada jogo de Cristiano Ronaldo comprovam a descendência. E onde um ficou, o
outro partiu. Onde um ficou às portas de ser ainda maior, o outro é gigante.
Onde um foi usado, o outro tem a vida que quer. Como em todas as boas
histórias, gosto de acreditar que se escreve direito por linhas direitas e que
Cristiano Ronaldo é filho de um Portugal democrático e que é tudo o que Eusébio
podia ter sido (com as distâncias da época, claro).
Os grandes não morrem. Mas Eusébio
não era apenas um grande. Era o King. O maior. Surge um a cada 50 anos. Já
temos o próximo. Mas sem o King nunca existiria mais nenhum. Não é possível
esquecer. Por isso, não me despeço do Eusébio. Ele ainda vai andar por cá
muitos anos.
6 de janeiro de 2014
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