2 de maio de 2014

O que está errado com as prescrições

Não há nada mais poderoso que o tempo. São os anos passados que permitem perdoar falhas, imposturas, enganos, traições e desamores. Ou que dão valor a certezas, verdades, convicções, fidelidades e amores. São os anos passados que confirmam escolhas. Ou que confirmam caminhos errados. Não escolhemos duas vezes da mesma maneira. Não erramos duas vezes da mesma maneira. E nunca julgamos duas vezes da mesma maneira. É para isso que existem as prescrições. Para fazer com que os anos passados não sejam apenas anos passados e para que as decisões sejam adequadas ao tempo que passou.
O funcionamento das prescrições é simples. Se passa um certo número de anos a contar do momento em que alguém cometeu um crime (ou uma contraordenação, que é um crime menor) sem que haja uma decisão final de um tribunal, não pode haver um julgamento, nem uma condenação, nem uma pena. Os tribunais ficam impedidos de o fazer. Há prescrições variadas que dependem da gravidade do crime. Tanto pode ser necessário passar 15 anos como apenas dois.
As prescrições não são um sinónimo de impunidade. Nem de complacência ou de relaxamento do poder de punir do Estado. São antes uma forma de fazer com que os anos passados também contem numa eventual decisão. Por duas razões. Por um lado, o tempo que passou pode ter tornado mais suave a condenação da comunidade em relação ao crime. Por outro lado, não faz sentido que um processo se arraste indefinidamente para desespero da pessoa acusada, que bem pode estar inocente. É por isso que só há um tipo de crimes que é considerado imprescritível e que nem todos os anos do mundo podem apagar. São os crimes contra a Paz e a Humanidade, como o Holocausto nazi ou o Holodomor soviético.  
Nas últimas semanas, soube-se que tinha decorrido o prazo de prescrição de oito anos de diversas contraordenações relacionadas com antigos administradores do BCP. Estava em causa a prestação de informações erradas ao mercado e a falsificação de contas ao longo de vários anos. Pelo doce enlevo da prescrição, foram-se multas de um milhão e meio de euros. Entretanto, como diria Maquiavel, é melhor anunciar todo o mal de uma vez. E assim vão surgindo notícias que também há ou pode haver prescrições noutros processos do BCP, do BPP e do BPN e até de outros crimes.
As contraordenações envolvendo bancos devem prescrever? Devem, se já tiver decorrido o prazo legal. E deviam poder prescrever? Não. Os sucessivos casos envolvendo bancos nos últimos anos puseram em causa de forma séria a confiança no sistema bancário. A um ponto que até a supervisão prudencial do Banco de Portugal, que não contempla a investigação de burlas ou crimes graves envolvendo contabilidades paralelas, foi posta em causa. Ao contrário do que devia ter sucedido, a condenação da comunidade em relação a estes factos não se suavizou. Tornou-se até mais exigente.
Então, o que está errado com as prescrições? Nada. Isso mesmo. Nada. Mais prazo, menos prazo, mais ano, menos ano, o resultado seria igual. Não adianta muito que o Governador de Portugal tenha proposto que, nestes casos, em vez de oito anos as contraordenações prescrevam em dez. Alterar as leis de pouco serve. Até porque toda a legislação relacionada com crimes e contraordenações não pode ser aplicada para o passado. E, na verdade, a última alteração legal nesta matéria, que é do ano passado, até vai no sentido certo, dificultando a prescrição quando já haja uma sentença condenatória.
O que está errado é a forma como funcionam as investigações e os tribunais. Como cada processo tem bem visível na capa a data da sua prescrição, não é desconhecimento dos prazos. Mas como cada procurador do Ministério Público ou juiz trabalha isolado e quase sempre só é avaliado quando o processo chega ao fim, é desconhecimento geral a forma como o processo está a ser conduzido. Investigações eficazes e julgamentos a tempo só são possíveis se houver uma gestão correta da máquina judicial que permita evitar prescrições.
Com processos em papel, o Ministério Público a investigar remetendo papéis e ofícios por carta, ausência de coordenação de investigações, rivalidades entre polícias, rivalidades entre polícias e o Ministério Público, falta de peritos técnicos e regras absurdas que permitem invalidar julgamentos só porque houve uma interrupção por mais de trinta dias, não há gestão que aguente.
Talvez a Ministra da Justiça se tenha precipitado quando exclamou que tinha acabado o tempo da impunidade. O que parece ter acabado é o seu tempo para fazer uma reforma séria do sistema judicial que não passe por alterar leis e fazer códigos. É que estes, por muito bons que sejam, qualquer um os faz. Ser um verdadeiro Ministro da Justiça que melhore a forma como este serviço público é prestado e que garanta aos cidadãos que todos os crimes são investigados e julgados, é que é bem mais difícil.     

11 de abril de 2014

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