2 de maio de 2014

O que devemos a Eusébio

Eusébio deu-nos muito. Mais do que lhe demos a ele. Eusébio deu-nos glória. Uma glória popular e genuína. Para todos. Não é pouco. E não espanta. Se ainda hoje quase não temos tradições desportivas, quanto mais nos anos 60. Só a equitação e a vela davam medalhas olímpicas por essa altura e até uns anos mais tarde. Equitação e vela, desportos caros e elitistas. Eusébio era outra coisa. Falava uma linguagem que todos compreendiam e podiam tentar imitar. A linguagem da bola de trapos com que ele começou a falar no bairro miserável onde cresceu em Moçambique. E foi com uma simples bola que foi o herói desportivo de classe mundial que nunca tínhamos tido.
Deu-nos um imenso orgulho. Completo, esvoaçante, veloz, atlético. Sem nunca desistir. O terceiro lugar no Mundial de 1966 quase que sabe a primeiro por isso. Por não nos termos impressionado com o Brasil de Pelé. Por termos virado o jogo com a Coreia do Norte marcando cinco golos. Por Eusébio ter saído do campo a chorar quando perdemos com a Inglaterra nas meias-finais. E por termos derrotado a temível União Soviética e, provavelmente, o melhor guarda-redes de todos os tempos, Yashin, no jogo para o terceiro lugar. É acrescentar uma Taça dos Campeões Europeus pelo Benfica e mais três perdidas. Ou o prémio do melhor jogador da Europa e ter sido duas vezes o melhor marcador europeu. Eusébio era o futebol em Portugal até há muito pouco tempo.
Se era o futebol em Portugal, no resto do mundo Eusébio era Portugal. Não esqueço o que me aconteceu há uns 15 anos numa estação de comboios perdida no leste da Hungria. Quando o chefe da estação de comboios, e único funcionário, soube que eu era português, a resposta foi Eusébio. Sem mais palavras. Tinha-o visto jogar. Lembrava-se. Melhor que Pelé, dizia. Melhor que muitos dos da altura, acrescentava. Um grande, sentenciava.
Há quem diga que perdemos com a partida de Eusébio. Perdemos quando os talentos geniais se desperdiçam e não passam da sombra. Com Eusébio, ganhámos. Todos. Eusébio não cumpriu apenas. Eusébio superou tudo. A si e a todos. E foi o menino pobre de uma das colónias portuguesas que foi o melhor jogador africano de todos os tempos, como declarava ontem o obituário do jornal inglês Guardian. Demos-lhe muito. Havia uma admiração imensa por Eusébio. Das duas vezes que me cruzei com ele, pude ver toda a deferência que o rodeava, a amabilidade portuguesa quase tímida com que todos falavam com ele.     
Mas não demos o suficiente. Eusébio devia ter podido sair do país no auge. Eusébio devia ter podido enriquecer onde quisesse. Eusébio devia poder ter chegado, se calhar, ainda mais longe. Eusébio não devia ter sido usado e abusado por um regime político. Eusébio, o mulato moçambicano, foi convertido em símbolo de uma pretensa harmonia racial excepcional que só havia em Portugal. Isto no país que só em 1961 aboliu leis específicas para os habitantes das colónias que, até então, não eram bem cidadãos e que mantinha uma segregação racial semelhante à dos outros países colonizadores. E no país que até hoje não tem um deputado negro. Ficámos a dever a Eusébio uma vida mais livre. Não é pouco. É mesmo muito.    
O King morreu. Viva o King. Trágico seria que o Rei tivesse partido sem deixar descendentes. Mas deixou. Houve vários que tentaram. Mas só um é que é verdadeiro e da mesma ordem de grandeza. A mesma vontade de ganhar, a mesma luta até ao último segundo, a mesma alegria em cada jogo de Cristiano Ronaldo comprovam a descendência. E onde um ficou, o outro partiu. Onde um ficou às portas de ser ainda maior, o outro é gigante. Onde um foi usado, o outro tem a vida que quer. Como em todas as boas histórias, gosto de acreditar que se escreve direito por linhas direitas e que Cristiano Ronaldo é filho de um Portugal democrático e que é tudo o que Eusébio podia ter sido (com as distâncias da época, claro).
Os grandes não morrem. Mas Eusébio não era apenas um grande. Era o King. O maior. Surge um a cada 50 anos. Já temos o próximo. Mas sem o King nunca existiria mais nenhum. Não é possível esquecer. Por isso, não me despeço do Eusébio. Ele ainda vai andar por cá muitos anos.            

6 de janeiro de 2014

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