2 de maio de 2014

Das falhas humanas

Francisco. Francesco. A diferença é uma letra. E uma certa pronúncia. Embora ambas sejam latinas. O primeiro, ainda o vemos por aí. De cara desfeita e alma pesada. A rondar os cinquenta anos. Cinquenta e dois para ser exacto. Do segundo, já não nos lembramos bem. Talvez reconheçamos a face imaculadamente barbeada e o bronze de navio. A rondar os cinquenta anos. Cinquenta e dois para ser exacto. Francisco José Garzon, o maquinista do comboio que se descarrilou perto de Santiago de Compostela. Francesco Schettino, o capitão do navio Costa Concordia, que se afundou perto de uma ilha italiana o ano passado.
Já se sabe quase tudo sobre o naufrágio do Costa Concordia. Há dois meses foi publicado o relatório do organismo italiano responsável por investigar desastres marítimos. São 180 páginas de um inglês com ritmo italiano que não deixa grandes dúvidas. O navio aproximou-se demasiado da costa de uma pequena ilha, desviando-se da rota sem motivo válido, e uma sucessão de erros humanos fez o resto. Há de tudo: cartas náuticas na escala errada, não verificação da distância da costa, presença de estranhos na ponte de comando que provocaram distracções várias, e até Francesco Schettino sem óculos de ver ao perto para conseguir ler o radar. A conclusão é que o naufrágio se deveu exclusivamente a falhas humanas. Schettino, acusado de homicídio por negligência, já reconheceu a sua culpa.
Ainda não se sabe quase nada sobre o descarrilamento do comboio de alta velocidade na Galiza. A curva que matou devia ser feita a 80/Km hora. Mas o comboio entrou na curva a 190 e saiu dos carris com violência. Ontem, perante um juiz, Garzon reconheceu que não sabia onde estava, que não sabia que curvas fazia. Parece que, antes de chegar a Santiago, há 31 túneis e 38 viadutos em menos de 100 Km., o que pode desorientar. Mas Garzon não se queixou da via nem do estado do comboio. Quando se abrirem as caixas negras, poderemos saber melhor o que se passou. Até porque a prática habitual é começar a travar quatro Km. antes da curva, conforme manda o livro horário, uma espécie de manual de velocidades que deve ser permanentemente consultado durante o trajecto. Impressiona como é que uma curva tão apertada e tão súbita não tem um redutor automático de velocidade. Impressiona como é que o sistema mais avançado de controlo de velocidade acaba pouco antes da curva, onde era mais necessário. Impressiona como é que um comboio de alta velocidade podia estar dependente de uma pessoa só.     
Os dois terão os seus julgamentos. É aí que se decidem os seus crimes, as suas culpas e os seus castigos. Os dois casos são diferentes. Se Schettino se escapuliu para terra firme assim que pôde, provocando ordens furiosas da capitania local para regressar a bordo do navio, Garzón assumiu a sua falha humana com uma dignidade que nem todos teriam. Ambos trazem mortos nas pontas dos dedos. O mais provável é que ambas as negligências mortais sejam punidas.
A negligência é falta de cuidado. Descuido, passividade, desleixo. Tanto de um capitão na ponte de comando rodeado de radares e instrumentos técnicos. Como talvez do maquinista que conduz mais de metade do caminho a alta velocidade com garantia que o comboio pára se houver algum problema. Tanta tecnologia, faz parecer estes acidentes aberrantes. Mas são também um pouco a sua causa. A muito humana acomodação e confiança em tanta técnica torna-nos mais descuidados, passivos, desleixados. Não se trata de uma desculpa de Schettino e talvez de Garzon. É mais um aviso para a nossa crescente dependência técnica que nos diz onde estamos, com quem estamos, do que gostamos, donde vimos, para onde vamos, o que partilhamos e quase o que somos. A tecnologia que nos embala, mas que não nos substitui. E que não resiste a erros humanos sucessivos.
Somos magnificamente humanos. Somos estupidamente humanos. Ou, simplesmente, como disse Garzon em pânico minutos depois do descarrilamento, somos apenas humanos.           

30 de julho de 2013

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