2 de maio de 2014

A montanha pariu um guião

Foram precisos dois anos, quatro meses e nove dias para haver um documento estratégico sobre o que o Governo quer fazer para algo tão fundamental como governar. Afinal, o Governo tinha toda a razão quando dizia que a produtividade dos trabalhadores portugueses tinha que aumentar. E, para provar a sua perspectiva, nada melhor do que dar o exemplo e demorar 862 dias para dizer o que quer fazer com o país. O habitual estado de graça do início dos Governos foi substituído por um estado de estudo que pode chegar a quase dois anos meio. Assim se combate o estigma que não pensamos antes de agir e que somos todos desenrascanço.      
Após tanto tempo de espera, o guião da reforma do Estado aí está. Em 112 páginas e em enorme fonte de letra. Certamente para que não haja dificuldades na leitura de nenhuma camada da população. O guião começa por enquadrar e por dar conta do que é que o Governo anda a fazer. Não fosse alguém andar distraído. Assim se pode ficar a saber da requalificação para o despedimento dos funcionários públicos ou das privatizações da ANA e da EDP. E desta maneira se queimam, perdão, se gastam 46 páginas. Portanto, o verdadeiro guião só tem 66 páginas. Certamente para que ninguém o vá ler muito afoitamente à espera de encontrar tudo no princípio. Há que moderar expectativas.
O guião propriamente dito é, sobretudo, um conjunto de medidas avulsas, a maior parte não concretizadas, não fundamentadas e não calendarizadas. Mas o mais surpreendente é que nada, mas mesmo nada, está quantificado no que à redução de despesa diz respeito. Não há uma única medida em que se tenha avaliado ou sequer estimado o seu custo e o seu benefício. Tanto discurso, comentário e conversa sobre a reforma do Estado que nos salvaria com majestosas poupanças e afinal ninguém fez contas. Mais. Tendo em conta que a ideia da reforma do Estado nasceu devido às supostas gorduras de um Estado obeso, nem a extinção do mais ínfimo organismo público é sugerida.
O melhor do guião é quando reconhece a sua natureza inútil. E é logo na página 46 quando refere que é necessário "fazer uma avaliação custo-benefício dos organismos e entidades que possam ser extintos ou melhor enquadrados". 862 dias de governação não chegaram para perceber o que não serve para nada. Isto só é compreensível se durante este tempo todo os governantes não falaram com os serviços, isto é, não governaram.
Mas há muito mais. Falar novamente em agregar municípios quando o Governo já perdeu a oportunidade de o fazer (p. 51). Concluir, publicar e pôr em discussão um estudo sobre serviços e equipamentos do Estado que não se sabe bem o que é nem quando estará pronto (p. 52). Definir um número máximo de processos para cada juiz, que irá perpetuar a carga processual, em vez de criar condições para que haja decisões mais curtas em cada processo (p. 56). Reformar a arquitectura institucional do sistema judicial sem explicar minimamente o que se pretende (p. 58). Proclamar abstractamente que se vai legislar contra monopólios (p. 62). Concessionar escolas a professores sem que se perceba as vantagens (p. 73). Criar uma comissão de reforma do IRS que parece que apenas poderá inverter a trajectória de agravamento deste imposto, o que pode significar apenas que o IRS não aumenta mais (p. 103). Criar um programa de simplificação administrativa tendo ainda que verificar e avaliar procedimentos, não se sabendo quando poderá começar semelhante programa (p. 106 e p. 107).
E é claro que não faltam propostas que fazem parte das convicções profundas deste Governo. É o caso do cheque-ensino, do plafonamento das contribuições para a segurança social e do aumento de unidades de saúde privadas. O alcance destas propostas é tal que têm que ser discutidas de forma autónoma.
Em vez de estudo técnico aprofundado e com qualidade, temos um documento que cita como fontes, entre outras, o Orçamento de Estado para 2014, que ainda está em discussão no Parlamento, a Secretaria de Estado da Administração Local, quem sabe se não foi uma pessoa que passou por lá e atendeu o telefone, ou o FMI, talvez a própria Christine Lagarde.
O guião não passa de um trabalho de casa que ninguém queria fazer e que lá se escrevinhou à pressa, no intervalo antes da aula. E, como esses trabalhos mal feitos, apenas evita uma falta do aluno, ficando rapidamente esquecido no meio da papelada.     

1 de novembro de 2013

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