19 de junho de 2014

Crónica indignada em tempos de Mundial



Indigne-se. Mas com estilo. Está na altura de escrever aquela crónica marcante e definitiva sobre um assunto. E, à boleia, mostrar que é um verdadeiro conhecedor daquela tragédia que se deve falar mas que ninguém fala. Qual tragédia? Exatamente essa. Comece por uma frase apelativa que pode bem ser esta: “Enquanto todo o mundo está a ver os jogos do Mundial”. Repare como esta magnífica abertura dá a entender que o mundo está parado a ver jogos de futebol atrás de jogos de futebol mas há uma pessoa atenta e vigilante que se preocupa seriamente com as coisas, você mesmo, o cronista indignado. Repare ainda como esta frase sugere que está acima destes fenómenos de massas que provocam alheamento estupidificante. No fundo, no fundo, o caro cronista indignado é o reduto final da espécie humana que não está alienada a engolir doses cavalares de hipnotismo futebolístico ministradas pela FIFA. Você está lá, num patamar superior de contemplação estoica da ordem mundial. Que inveja.

Uma vez conquistada a admiração embevecida do leitor pela renúncia sofrida ao maior fenómeno desportivo mundial, está na altura de completar a frase com aquela horrível tragédia. Qual? É mesmo essa. Quanto mais tragédia, melhor. Quanto mais desconhecida, melhor. Dou-lhe três possibilidades de indignação pronta a vestir. A conquista da maior refinaria do Iraque por extremistas que fazem parecer a Al Qaeda uns meninos de coro, a guerra não declarada entre a Ucrânia e a Rússia ou o recente golpe militar na Tailândia. A indignação só é boa se for acutilante e der uma ideia logo a abrir da insustentável situação. Portanto, complete a frase anterior com “o [inserir país] desfaz-se aos nossos olhos perante a passividade da comunidade internacional”. Está em grande, meu caro.

O que é que falta na crónica? Já adivinhou, não já? Faltam aquelas palavrinhas mágicas: decadência e Europa. Por qualquer ordem. Tanto pode ser “a decadência da Europa” como esta “Europa decadente”. Portanto, acrescentamos ainda que toda a situação “demonstra bem o estado a que chegou esta Europa decadente”. Finalmente, conclua dando uma lição de moral ao leitor. Ele precisa de se sentir culpado. Ele quer sentir-se culpado. E o cronista indignado tem que mostrar que fez um pequeno esforço para compreender esse jogo bárbaro que se joga com os pés e com a cabeça, embora no caso da seleção portuguesa seja sem cabeça mesmo. Sugiro o seguinte: “Da próxima vez que marcarem um golo no Mundial, lembre-se que é a sua segurança que está em causa”. Dá-me uma cópia autografada da sua crónica indignada?

Cá está a nossa bela crónica indignada em tempos de Mundial. Prontinha a pespegar por aí: ““Enquanto todo o mundo está a ver os jogos do Mundial, o [inserir país] desfaz-se aos nossos olhos perante a passividade da comunidade internacional, o que demonstra bem o estado a que chegou esta Europa decadente. Da próxima vez que marcarem um golo no Mundial, lembre-se que é a sua segurança que está em causa”. Quando sair à rua e caírem beldades nos seus braços a elogiar a sua escrita poderosa e a sua consciência dos problemas do mundo perante o alheamento geral, lembre-se deste texto e refira de passagem quem o inspirou. O escriba envergonhado que quer ver todos os jogos do Mundial agradece.   

17 de junho de 2014

Teorias de uma conspiração


A culpa não foi nossa. O árbitro viu um penálte que mais ninguém viu. Se fosse ao contrário, não marcavam. Onde é que alguém ia marcar um penálte contra a Alemanha. Ainda para mais com a Mérkel a assistir. Aquilo foi carga de ombro. Ou carga de mão. Tanto faz. Um penálte daqueles não se marca. Ainda por cima na primeira parte do primeiro jogo do grupo. Se fosse no segundo ou no terceiro jogos, ainda se compreendia. Agora, no primeiro jogo do grupo é muito suspeito. O árbitro é sérvio? Está explicado. Toda a gente sabe que a Sérvia é irmã da Rússia. E que a Rússia é muito amiga da Suíça por causa das contas que os ricaços russos lá têm guardadas. Ora, a Suíça é praticamente a Alemanha. É claro como água de coco brasileira: os alemães pediram aos suíços para pedir aos russos para pedir aos sérvios para pedir ao árbitro para fazer um jeitinho. E ele fez um jeitão. Somos sempre roubados. Sempre. E depois há ainda o Pepe. Ele não faz nada. O alemão é que o provocou. Ele só foi lá tirar satisfações. E encostou, en-cos-tou, a cabeça ao de leve. Estas coisas estão sempre a acontecer. Mas só a nós é que nos expulsam. Se fosse ao contrário, também expulsavam o português por estar a fazer fífias. A FIFA é que é uma grande fífia. Isto está tudo feito. Viu-se logo nos grupos que ficaram feitos. Toda a gente tem grupos fáceis e nós, pumba, a Alemanha e a Merkel. Só para nos lixar. Podia ser o Gana, os EUA e a Costa Rica. Mas não a Alemanha. É logo para o português ficar sem manias. Não papo grupos e não papo este grupo, que a mim não me enganam. É que a Alemanha tem que passar. Tem que ser. Ou achas que a Mérkel ia ver um jogo que não ganhava? Oh pá, eu não nasci ontem. Isto já estava tudo feito. O resto nem vi, que já sabia que ia ser uma roubalheira. Eu não vejo mais nada. Para mim, está tudo visto. Quando organizarem um Mundial a sério, sem FIFA e sem roubalheiras, eu volto a ver a seleção. 

30 de maio de 2014

Privatizar burocracia











Há notícias bravas e notícias mansas. As notícias bravas chegam sem avisar e sacodem a realidade a que estávamos habituados. Dão origem a inflamados comentários e a articuladas opiniões. É o caso da tentativa de apeamento de Seguro por Costa. Ao contrário, as notícias mansas insinuam-se discretamente e querem é passar despercebidas. Acabam por não dar origem a nada, nem comentário, nem opinião. É o caso da reforma dos serviços públicos anunciada pelo Ministro Maduro há dois dias. São duas medidas apenas que de mansas têm muito pouco.

A primeira é a criação de centros comerciais do Estado onde vai estar tudo enfiado: finanças, segurança social, registos, centros de emprego, inspeção do trabalho, serviços de agricultura e florestas, estrangeiros e fronteiras e até o pior serviço da administração pública do mundo ocidental, aquele sítio onde se passa um dia inteiro para tratar da renovação da carta de condução ou de assuntos automóveis. Cada município terá, pelo menos, um destes centros comerciais onde o indefeso cidadão poderá ter toda a burocracia concentrada, e admirar a criatividade do Estado ao obrigá-lo a preencher impressos, papeletas, formulários e declarações num só lugar. Nem um só procedimento burocrático é aligeirado, reduzido ou eliminado. Põe-se é tudo junto para o cidadão não perder tempo em deslocações e ter a burocracia toda à mão de preencher.   

A segunda medida é privatizar a burocracia aos CTT ou a entidades do terceiro sector. Não caro leitor, leu bem, não é engano meu, é mesmo dar burocracia a privados para eles explorarem. Como explica preclaro Maduro, vai haver espaços do cidadão onde um funcionário vai preencher na Internet os pedidos dos cidadãos. Também houve explicação sobre os ganhos dos privados com este negócio: metade das poupanças obtidas vai para o privado. Só não houve explicação porque é que o pobre cidadão, que já suporta enormes impostos, e que tem ainda que suportar taxas, taxinhas, custos e custas cada vez que utiliza um serviço do Estado, passa também agora a ter que suportar ganhos dos privados com a sua burocracia. É que para dar dinheiro a privados, Maduro está pronto e em sentido. Para dar dinheiro a cidadãos, descendo os elevados preços de registos, certidões, renovações e outras burocracias, já Maduro não matura.

Três anos de Governo e não há simplificação administrativa que se sinta. As obrigações burocráticas dos cidadãos continuam as mesmas e, em muitos casos, mais caras. E tudo está pior. Cada ida a um serviço público começa a fazer lembrar o Portugal de há 30 anos, onde se esperava e desesperava uma manhã ou uma tarde para tratar de um assunto tão simples como tirar o bilhete de identidade.

Mas é com Maduro que vamos, com burocracia toda juntinha e aconchegada num centro comercial para que o cidadão não sinta falta de nenhum procedimentozinho. E vamos também com pagamentos a privados suportados pelos cidadãos já afogados em impostos, que os preços da burocracia são sempre para o cidadão pagar. De madura esta reforma não tem nada. Tem muito mais do oposto. 

27 de maio de 2014

Um enorme desalento


As europeias não são umas eleições. Ninguém consegue explicar em duas linhas para que serve e o que faz o Parlamento Europeu. E ninguém sabe bem o que fez cada um dos eurodeputados. A prova é que só falamos dos nossos quando levam Portugal para Bruxelas e falam lá do que se discute cá. De resto, perdemo-nos em glórias burocráticas como os relatórios relatados ou as comissões presididas. Há exceções. Mas demasiado escassas para tornar tudo diferente. Se não se sabe bem por que se vota, vota-se pelo que pode afetar a vida de todos os dias. As europeias não são umas eleições. São uma sondagem oficial e certificada sobre o estado do país.

É por isso que a abstenção não é relevante. Desde as europeias de 1994 que está acima dos 60%. Aliás, em 1994 foi de 64%. Nas europeias de domingo, ficou em 65%. É quase o mesmo. Proclamar que esta abstenção é alheamento é esquecer que os eurodeputados não sobem impostos nem cortam reformas, só para falar das mais recentes tendências da política portuguesa. Sendo assim, as europeias só comparam com as europeias. E o melhor é comparar com as últimas. Entretanto, podemos parar com a flagelação por nos termos abstido numas eleições que parecem servir para muito pouco. A culpa não é nossa, nem dos eurodeputados. É mesmo da arquitetura institucional europeia, que só muito lentamente e em pequeninos passinhos tem dado poderes que se vejam ao Parlamento Europeu.   

O PS quase não ganhou estas europeias. Comparando com as europeias de 2009, em que teve 26% e cerca de 946.000 votos, em 2014 o PS teve 31% e apenas mais uns 85.000 votos. Em 2009, o PS estava desgastado por estar no Governo. Em 2014, o PS está desgastado por estar na oposição. Depois de três anos de Governo intenso com medidas de empobrecimento geral, Seguro apenas consegue o segundo pior resultado de sempre do PS em europeias. Não é pouco. É quase nada.
    
O PSD e o CDS perderam as eleições. E perderam bem. Dos votos somados que tiveram em 2009, quando concorreram separados, um terço desapareceu. Ou, doutra forma, um em cada três votantes no PSD e no CDS preferiu não repetir o voto. É um desastre. E que ainda não acabou. Por mais discursos que se façam com os olhos e as palavras nas eleições legislativas.

O PCP subiu ligeiramente a sua votação quando a comparamos com as europeias de 2009, o que, tendo em conta a sua implantação e a sua capacidade de atrair voto de protesto, não surpreende. A dimensão da derrota do BE está nestes números: 382.667 votos nas europeias de 2009 e apenas 149.546 nas europeias de 2014. O BE perdeu 233.121 votos. Nunca mais os vai recuperar. O Livre de Rui Tavares, um partido que há um ano nem existia, teve metade dos votos do BE nestas europeias. Ainda vai recuperar mais votos do BE.  

Finalmente, o partido verde de Marinho e Pinto, um notável ecologista, conseguiu um verdadeiro feito. Sem estrutura nem campanha mediática, teve 7,2%, cerca de 234.000 votos. Falando vagamente nos males dos partidos, que não quer substituir, nos advogados, que já não quer representar, e na corrupção de juízes, que suspeita haver, ainda propõe a criação de tribunais pelo interior do país. Tudo simples, tudo fácil. Mas a verdade é que este discurso mais popular que populista permitiu ser o terceiro partido mais votado nos distritos de Bragança, Guarda, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu e ainda nos Açores e na Madeira. Se há um vencedor destas europeias, é mesmo Marinho e Pinto. E também o segundo eurodeputado eleito, que ainda não fixei o nome.   

As contas finais são estas. Seguro não consegue ganhar votos e a dupla Passos e Portas está em queda acentuada. A continuar assim, será inevitável haver um governo bloquista centralista com uma liderança tricéfala. Se lideranças bicéfalas em blocos dão que no dão, esta só pode dar pior. Os três partidos de governo têm uma base cada vez mais estreita.  

Mas a maior conta final é mesmo o que leva Marinho e Pinto a ter tantos votos. Afinal, o que faz com que tanta gente prefira votar em algumas vagas ideias sobre partidos, a corrupção e as dificuldades da vida? Parte da resposta está nos últimos anos. Ou até nos últimos meses. O principal instrumento do ofício dos políticos é a sua palavra. Se esta não tem valor, aceitação ou credibilidade, o voto transfere-se para quem assegura um mínimo desses três componentes. Mesmo que defenda ideias pouco elaboradas.

Não há muito tempo Passos tentou enganar o país inteiro dizendo que uma subida de impostos não era uma subida de impostos. Ainda há menos tempo, Seguro, a mais de um ano de distância de eventualmente ser eleito, já promete que não sobe impostos e repõe salários e pensões. Nem o primeiro enganou ninguém, nem o segundo convenceu alguém. São apenas exemplos que passam despercebidos. Mas que levam a um enorme desalento com quem governa ou com quem pode realmente governar.  

Estas europeias demonstram que tudo o que vai acontecendo pela Europa, o esboroamento do sistema partidário tradicional, também vai chegar a Portugal. Parece é que pode chegar mais depressa do que se pensava.    

15 de maio de 2014

Para que se fez a União Europeia?

A segunda guerra mundial não chegou até nós. A nossa segunda guerra mundial foi seguida em duvidosa neutralidade enquanto o Estoril se enchia de espiões e se faziam fortunas com a exportação de volfrâmio para a Alemanha. A ocupação japonesa de Timor era demasiado remota para mudar este estado de coisas.
 Ainda hoje, temos dificuldades em perceber a dinâmica da Europa central, onde as cidades parecem todas iguais e muita gente fala melhor alemão que inglês. Temos as mesmas dificuldades para perceber bem o que foi a segunda guerra mundial: um confronto de proporções gigantescas entre a Alemanha e a União Soviética. Montgomery no deserto e o Dia D são episódios largamente romanceados e bem menores quando comparados. Daí que não admire que saibamos muito pouco sobre a devastação dos tempos a seguir à guerra. E é disso que este livro trata. Com o cuidado e o rigor que o tema merece. É que todos os povos precisam de mitos fundadores que garantam a sua inocência. Mas nunca é bem assim.   
Humilhações, vinganças, torturas e matanças. Só com culpados. Os checos vingaram-se dos alemães de forma descontrolada: morreram cerca de 40.000. Dos prisioneiros de guerra alemães guardados pelos franceses, morreram uns 24.000 por falta de condições de subsistência. Claro que este número empalidece com o milhão que morreu às mãos dos soviéticos. Calcula-se que tenham morrido também uns 50.000 alemães em campos de trabalho forçados na Polónia. Mas a morte não escolhia apenas os derrotados. À medida que a França se ia libertando, os antigos resistentes também iam executando colaboracionistas. Estima-se que uns 10.000. Aconteceu o mesmo na Bélgica, na Holanda e em Itália. Aliás, o norte de Itália, a última zona a ser libertada, entrou numa espiral de violência sem controlo: em dois meses foram assassinados 9.000 alegados fascistas.
A morte andava à solta. E a cobardia também. Em França, era habitual as mulheres acusadas de terem colaborado com alemães serem despidas em público e terem o cabelo rapado. Na Noruega, as crianças filhas da ocupação alemã, completamente saudáveis, foram tratadas como portadoras de algum tipo de deficiência mental durante toda a sua vida.
Nem o anti-semitismo abrandou. Na Holanda, os judeus regressados foram recebidos com frieza. Na Hungria, na Ucrânia e até na Polónia, onde, de facto, morreram cerca de três milhões de judeus, comunidades inteiras atacavam judeus, muitas vezes matando-os. A Ucrânia e a Polónia tiveram limpezas étnicas recíprocas em larga escala. Já para não falar da deslocação forçada de milhares de polacos da Ucrânia para a Polónia e de milhões de alemães da nova Polónia ocidental, antigo território alemão, para a Alemanha, onde viveriam sempre algo ostracizados.
A União Europeia tem origem remota em formas de cooperação desenvolvidas pela França e pela Inglaterra ainda na primeira guerra mundial. Não há dúvidas que a barbárie da segunda guerra, e a devastação que se lhe seguiu, foram o principal motivo para a sua criação. Apesar de a União Europeia hoje ser muito mais do que uma entidade que preserva a paz, talvez o seu destino seja só esse. Veremos nas próximas décadas. 

14 de maio de 2014

O escangalhamento da contratação coletiva

Novos tempos exigem novas palavras para descrever a realidade. Escangalhamento acabou de nascer para descrever o que faz o Governo nas suas propostas de revisão da legislação laboral, mais concretamente, da contratação coletiva.
Os contratos coletivos entre associações de empregadores ou empresas e sindicatos de trabalhadores têm vantagens para as duas partes. A empresa negoceia um contrato único para todos os trabalhadores, deixando de ter regimes diversos e variados para alguns. E os trabalhadores podem conseguir obter melhores condições de trabalho, pois, ao agir em conjunto, têm mais força negocial. 
Pela sua natureza, este contrato coletivo deve ser periodicamente revisto ou pode até acabar por iniciativa de uma das partes. Daí que o Código do Trabalho tenha regras para o que acontece quando o contrato coletivo chega ao fim ou quando, em novas negociações, não há acordo e há um impasse. A solução é simples: o contrato coletivo continua a vigorar por mais ano e meio e, se mesmo assim, não houver acordo, há lugar a arbitragem no Conselho Económico e Social para decidir como fica o contrato coletivo. Durante todo este processo os trabalhadores não perdem nem um cêntimo da sua remuneração. O que faz todo o sentido. Esta solução é justa, sensata e permite que, ao longo deste processo negocial, nenhuma das partes tenha mais força que a outra e possa impor uma solução desequilibrada.
Impante como se quer, Mota Soares apresentou na semana passada uma proposta mágica para escangalhar a contratação coletiva: se o contrato coletivo terminasse, os trabalhadores perderiam automaticamente direito a todas as parcelas da remuneração que não fossem remuneração-base. Ou seja, durante qualquer processo negocial relativo a um contrato coletivo, as associações de empregadores ou empresas passavam a poder impor as suas condições aos trabalhadores. O processo negocial pretendido por Mota Soares não era um processo negocial. Era um processo desigual. Pois os trabalhadores nunca poderiam negociar em igualdade sabendo que, a partir de determinado momento, passariam a ganhar menos.
O absurdo desta solução era tão evidente que nem as confederações patronais apoiaram esta proposta. Daí o escangalhamento. Escangalhar a contratação coletiva, fazendo com que não funcione. E fingimento, fingir que esta proposta era séria. Não era. Nem nunca poderia ser aceite por qualquer confederação de sindicatos, incluindo a UGT.
Ontem e hoje, anunciou-se com pompa que o Governo cedeu e esta proposta caiu. Não é verdade. Esta era uma proposta falsa para que o Governo fingisse que tinha cedido. Perguntar qual é o preço da UGT para alinhar com Passos, como pergunta António Costa, diretor do Diário Económico aqui, não está certo. A pergunta devia ser: qual é o preço do Governo para fazer propostas sérias?
Imagem de eNRIC VIVES-RUBIO retirada em http://www.publico.pt  

13 de maio de 2014

Putin joga xadrez, os outros jogam damas

Tal como podemos dizer que a segunda guerra mundial só acabou quando o Exército soviético saiu de grande parte da Europa do leste, há pouco mais de 20 anos, também podemos dizer que a desintegração da União Soviética é um processo que ainda não acabou. É isso que explica o que se passa na Ucrânia. 

Bastaram também pouco mais de 20 anos para que a Rússia resolvesse recuperar algum do território perdido. Um império é um império. E o maior país do mundo nunca deixou de se considerar um império. A glória perdida é trauma demasiado recente para não ter solução. Afinal, populações que falam russo e estão em território onde a Europa não está, estão mesmo à mão de anexar.

Já havia precedentes. A Transnístria, uma estreita faixa de terra entre a Moldávia e a Ucrânia, de onde os soldados russos nunca saíram, apesar de ser oficialmente território moldavo, é, na prática, uma província russa. Diz quem visita que é um museu soviético ao ar livre. Mas também a Abcázia e a Ossétia do Sul, territórios oficialmente georgianos, que a Rússia governa com alegre impunidade e onde observadores internacionais não podem entrar.
Putin ocupa a Crimeia. Putin fabrica um referendo na Crimeia ou, noutra versão, consente um referendo fabricado na Crimeia. Putin celebra a ocupação da Crimeia. Putin paga pensões de reforma em dobro aos habitantes da Crimeia. E assim a Rússia recupera um território simbólico, que ainda lhe permite dominar o Mar Negro sem ter que andar a discutir contratos de aluguer da sua base naval na Crimeia (que nunca foi desmantelada desde que a Ucrânia se tornou independente). 

Mas Putin não para. Putin põe tropas na fronteira com a Ucrânia. Putin diz que não estão tropas na fronteira. Mas as tropas não se mexeram. Putin diz que é melhor não haver referendos no leste da Ucrânia. Mas fazem-se referendos com vigilância armada que acabam com percentagens norte-coreanas a favor de uma autonomia independente. O facto de os líderes destes movimentos separatistas serem rufiões com ligações à Rússia e ao exército russo é certamente um acaso.

Por muito cuidado com que a Rússia reaja a estes referendos, apelando enigmaticamente a uma implementação pacífica dos seus resultados, parece claro que há uma estratégia de Putin que passa por vários caminhos. Ou criar no leste da Ucrânia um novo Estado fantoche com proteção militar russa. Ou aproveitar ao máximo um leste ucraniano autónomo que a Ucrânia não consiga dominar. Ou, simplesmente, fazer parte de qualquer solução de governação da Ucrânia que tenha que ser encontrada a seguir às eleições presidenciais ucranianas deste mês. Qualquer opção é uma vitória. E uma recessão económica vale bem um Putin na história como um moderno conquistador.

Enquanto isso, sai uma nova bateria de sanções europeias, que, com certeza, deixa Putin amedrontado. Se não nos esquecermos que a Ucrânia pediu a adesão à União Europeia em 1994 e que nunca houve grande vontade ou entusiasmo em negociar este pedido, percebemos que a Europa move peças numa só direção, à espera que algo aconteça, desde que não seja muito incómodo. Já Putin joga com várias peças em todas as direções e em movimentos variados. É fácil perceber quem vai ganhar.            

7 de maio de 2014

Passos, o navegante




Lá vai Passos no seu barquinho ao leme
Sem mar revolto é herói que nada teme 
Passos, desventuroso marinheiro
Que nunca por nunca é verdadeiro
Sabe bem da árdua arte de navegar
E de o dito não fazer nem nunca lá voltar
Se acaso houvera mais um bojador
Não hesitaria em lançar mais imposto indolor

E assim navega com atrelada comitiva
Que o dia não acaba sem mais uma tentativa
Das gentes convencer que a saída foi limpa
Quando ainda a troika escreve com tinta
O que terá o reino que cumprir
Agora e em todo o futuro que há de vir

À dúvida se é malévola montagem
Vai seguindo sempre o barquinho a viagem
Em águas calmas e grutas de fantasia
Que o navegante não pode ver realidade em demasia

2 de maio de 2014

Os melhores dias

Em baixo, os meus melhores dias no Expresso online. Mais de um ano de escrita semanal, ou quase, com ideias e ironias. Em cima, o que ainda há de vir. Os outros dias que ainda vão passar.

As pensões e a incompetência estratégica

Tempos houve em que era suposto os governos decidirem de forma transparente para que ninguém tivesse dúvidas em relação àquilo com que podia contar na sua vida. Tempos há em que, aparentemente, são tomadas decisões que, na verdade, são apenas comunicações truncadas para que ninguém saiba com o que pode contar na sua vida. É a estratégia da decisão queimada. Fala-se tanto e de forma tão pouco rigorosa sobre um assunto que, por medo, se acaba a aceitar qualquer decisão que seja definitiva e ponha fim à confusão. O que se passa com as pensões é o melhor exemplo.
Desde 2011 que as pensões de reforma têm um imposto especial: a contribuição extraordinária de solidariedade. Como o nome indica, é algo que apenas pode existir enquanto se verificar uma situação extraordinária. Ou seja, uma situação que acontece raras vezes. Em 2011, esta contribuição abrangia somente pensões superiores a € 5.000. Em 2014, passou a abranger todas as pensões superiores a € 1.000. Digamos apenas que o carácter extraordinário desta contribuição tem sido aprofundado no tempo e no valor.
Na semana passada, ficámos a saber quais os planos de Passos Coelho para as pensões. Ou pelo menos parte deles. Ou, se calhar, ficámos sem saber nada. Já se sabia que estava a ser estudada uma fórmula para tornar esta contribuição definitiva. Mas a Ministra das Finanças também já tinha dito que em 2015 "as pessoas não seriam mais penalizadas do que são agora, antes pelo contrário". Passos Coelho emendou a sua Ministra e disse que em 2016 é que vai ser: "Vamos ter no que respeita a salários e a pensões no futuro de os desonerar. Isso é claro. Possivelmente em 2016". Conclui-se que em 2014 atingimos o montante máximo da contribuição extraordinária de solidariedade. E que em 2015 essa contribuição vai passar a ser definitiva. E ainda que em 2016 vai ser aliviada. Digamos apenas que o definitivo de 2015 é um provisório para vigorar escassos doze meses. Um modelo de coerência, portanto.    
Estas insignificantes contradições já chegam para que um pensionista viva uma reforma cheia de emoção e aventura sem saber ao certo quanto receberá nos anos que lhe restam. No fundo, Passos Coelho só pretende dar uma certa cor à vida cinzenta dos reformados. Mas se juntarmos esta confusão à confusão anterior, que passava por indexar pensões à demografia e à evolução da economia, percebemos que Passos Coelho quer mais do que animar velhinhos. O que Passos quer é oferecer-lhes uma viagem mensal numa montanha russa de emoções em que cada mês é um novo mês de descoberta do valor da pensão. Afinal, para o Governo, os 80 anos são os novos 20. O facto de a atual fórmula de cálculo das pensões já incluir fatores como o crescimento económico ou a esperança média de vida não interessa para nada. 
Tendo em conta que o que está em causa não são as pensões, mas as pessoas que as recebem, este Governo, outro Governo, qualquer Governo só tinha um caminho: apresentar um estudo sério sobre o sistema de pensões, explicar a evolução previsível desse sistema nos próximos 30 anos, propor as reformas necessárias para assegurar a sua sustentabilidade, eliminar desigualdades e regimes especiais eventualmente injustos, aproximar os regimes das pensões públicas e privadas dentro dos limites autorizados pelo Tribunal Constitucional e ponderar de forma clara quais os cortes a fazer para que o sistema seja estável e previsível para todos.
E não, não vale dizer que é matemática e que basta fazer contas. Numa matéria tão sensível como esta, o Estado está obrigado a tomar decisões que possam ser escrutinadas por todos e a deixar documentos consistentes que permitam perceber as opções tomadas. Mas é compreensível que não haja nada disso. Afinal há poucas verbas para estudos, pareceres e consultas e, como se sabe, nem um cêntimo o Governo gasta em luxos desses.
O que fica é uma sucessão de contradições, incertezas várias, desmentidos semanais e infelicidades verbais. E que, no fundo, não passam das ordens camufladas do FMI. Basta consultar o recente relatório da 11.ª avaliação do FMI que foi ontem conhecido e que inclui quase tudo o que tem sido falado nesta matéria. Três anos de Governo e ainda não chegaram para que o próprio Governo decidisse o que quer fazer com as pensões sem ter que cumprir ordens troikanas.
Parece que, depois desta agitação, os cortes das pensões serão finalmente conhecidos no final do mês, embora sem garantias de vigorarem mais do que um ano. Na verdade, até parece que tanta incompetência é estratégia para que todos os pensionistas se sintam aliviados quando estes números forem conhecidos e parecer que a confusão chega ao fim. O que não deixa de ser uma estratégia bastante competente para quem quer decidir sozinho e sem grande escrutínio o que fazer com as pensões.

22 de abril de 2014

O que está errado com as prescrições

Não há nada mais poderoso que o tempo. São os anos passados que permitem perdoar falhas, imposturas, enganos, traições e desamores. Ou que dão valor a certezas, verdades, convicções, fidelidades e amores. São os anos passados que confirmam escolhas. Ou que confirmam caminhos errados. Não escolhemos duas vezes da mesma maneira. Não erramos duas vezes da mesma maneira. E nunca julgamos duas vezes da mesma maneira. É para isso que existem as prescrições. Para fazer com que os anos passados não sejam apenas anos passados e para que as decisões sejam adequadas ao tempo que passou.
O funcionamento das prescrições é simples. Se passa um certo número de anos a contar do momento em que alguém cometeu um crime (ou uma contraordenação, que é um crime menor) sem que haja uma decisão final de um tribunal, não pode haver um julgamento, nem uma condenação, nem uma pena. Os tribunais ficam impedidos de o fazer. Há prescrições variadas que dependem da gravidade do crime. Tanto pode ser necessário passar 15 anos como apenas dois.
As prescrições não são um sinónimo de impunidade. Nem de complacência ou de relaxamento do poder de punir do Estado. São antes uma forma de fazer com que os anos passados também contem numa eventual decisão. Por duas razões. Por um lado, o tempo que passou pode ter tornado mais suave a condenação da comunidade em relação ao crime. Por outro lado, não faz sentido que um processo se arraste indefinidamente para desespero da pessoa acusada, que bem pode estar inocente. É por isso que só há um tipo de crimes que é considerado imprescritível e que nem todos os anos do mundo podem apagar. São os crimes contra a Paz e a Humanidade, como o Holocausto nazi ou o Holodomor soviético.  
Nas últimas semanas, soube-se que tinha decorrido o prazo de prescrição de oito anos de diversas contraordenações relacionadas com antigos administradores do BCP. Estava em causa a prestação de informações erradas ao mercado e a falsificação de contas ao longo de vários anos. Pelo doce enlevo da prescrição, foram-se multas de um milhão e meio de euros. Entretanto, como diria Maquiavel, é melhor anunciar todo o mal de uma vez. E assim vão surgindo notícias que também há ou pode haver prescrições noutros processos do BCP, do BPP e do BPN e até de outros crimes.
As contraordenações envolvendo bancos devem prescrever? Devem, se já tiver decorrido o prazo legal. E deviam poder prescrever? Não. Os sucessivos casos envolvendo bancos nos últimos anos puseram em causa de forma séria a confiança no sistema bancário. A um ponto que até a supervisão prudencial do Banco de Portugal, que não contempla a investigação de burlas ou crimes graves envolvendo contabilidades paralelas, foi posta em causa. Ao contrário do que devia ter sucedido, a condenação da comunidade em relação a estes factos não se suavizou. Tornou-se até mais exigente.
Então, o que está errado com as prescrições? Nada. Isso mesmo. Nada. Mais prazo, menos prazo, mais ano, menos ano, o resultado seria igual. Não adianta muito que o Governador de Portugal tenha proposto que, nestes casos, em vez de oito anos as contraordenações prescrevam em dez. Alterar as leis de pouco serve. Até porque toda a legislação relacionada com crimes e contraordenações não pode ser aplicada para o passado. E, na verdade, a última alteração legal nesta matéria, que é do ano passado, até vai no sentido certo, dificultando a prescrição quando já haja uma sentença condenatória.
O que está errado é a forma como funcionam as investigações e os tribunais. Como cada processo tem bem visível na capa a data da sua prescrição, não é desconhecimento dos prazos. Mas como cada procurador do Ministério Público ou juiz trabalha isolado e quase sempre só é avaliado quando o processo chega ao fim, é desconhecimento geral a forma como o processo está a ser conduzido. Investigações eficazes e julgamentos a tempo só são possíveis se houver uma gestão correta da máquina judicial que permita evitar prescrições.
Com processos em papel, o Ministério Público a investigar remetendo papéis e ofícios por carta, ausência de coordenação de investigações, rivalidades entre polícias, rivalidades entre polícias e o Ministério Público, falta de peritos técnicos e regras absurdas que permitem invalidar julgamentos só porque houve uma interrupção por mais de trinta dias, não há gestão que aguente.
Talvez a Ministra da Justiça se tenha precipitado quando exclamou que tinha acabado o tempo da impunidade. O que parece ter acabado é o seu tempo para fazer uma reforma séria do sistema judicial que não passe por alterar leis e fazer códigos. É que estes, por muito bons que sejam, qualquer um os faz. Ser um verdadeiro Ministro da Justiça que melhore a forma como este serviço público é prestado e que garanta aos cidadãos que todos os crimes são investigados e julgados, é que é bem mais difícil.     

11 de abril de 2014

Dez razões para apoiar o Acordo Ortográfico

Durante o dia de hoje, os nossos deputados terão finalmente uma questão verdadeiramente importante para decidir: devem ou não as consoantes mudas sobreviver? Será que Portugal deixa de ser Portugal e que os portugueses deixam de ser portugueses se passarmos a escrever sem as consoantes mudas? Devemos condenar à morte estas periclitantes letrinhas? Andamos tão entretidos com questões menores como o desemprego elevado, a emigração galopante e os cortes definitivos nas pensões que não estamos suficientemente atentos para a maior ameaça à maneira de viver portuguesa: o Acordo Ortográfico. 
Pelo menos, é essa a ideia que fica cada vez que se lê mais um artigo contra o Acordo Ortográfico. Ainda esta semana, foram publicados vários deles no jornal Público. Clama-se contra a invasão estrangeira. Brame-se pelo português de lei. Invectivam-se os traidores da pátria portuguesa. Mas será que o Acordo Ortográfico nos vai condenar a uma nova Idade Média de trevas e ignorância? Será que podemos viver normalmente sem consoantes mudas? O que me parece é que há pelo menos dez boas razões para apoiar o Acordo Ortográfico.
1. Começando pelo princípio. Foi Portugal que, em 1911, alterou a grafia da língua portuguesa sem consultar o Brasil, o que fez com que passasse a haver duas ortografias para a mesma língua. O Acordo vem resolver este erro histórico.
2. As alterações do Acordo Orográfico facilitam a aprendizagem. Quer de crianças, quer de estrangeiros. Por uma razão simples: as palavras passam a ficar mais próximas da forma como se lêem.
3. O Acordo Ortográfico apenas afeta um número diminuto de palavras, cerca de 1,6%. O que significa que as alterações trazidas pelo Acordo são mínimas face ao português que se escreve.
4. As escolas portuguesas já ensinam conforme o Acordo Ortográfico. As leis portuguesas já são publicadas conforme o Acordo Ortográfico. O Governo já governa conforme o Acordo Ortográfico. A maioria dos jornais já publica conforme o Acordo Ortográfico. Parece impossível, mas tudo isto acontece sem revolta, dor ou trauma.
5. Entrando no Acordo, é evidente que nunca poderia haver qualquer acordo com o Brasil para unificar a ortografia que não abrangesse as consoantes mudas. É que, simplesmente, os brasileiros não as afloram nem as pronunciam.
6. E quem acha que abdicámos da nossa forma de escrita, é bom lembrar que o Brasil também cedeu e deixou, por exemplo, de usar o trema em algumas palavras, como no "u" em linguiça.
7. Há apenas oito países no mundo que têm o português como língua oficial. E só há duas ortografias, a portuguesa e a brasileira. Chegar a um consenso quanto à forma de escrever é relativamente fácil. O que é altamente vantajoso para uma língua falada em quatro continentes por mais de 250 milhões de pessoas.
8. Numa perspectiva egoísta, o Acordo Ortográfico contribui, de forma modesta, para que o português do Brasil se mantenha português do Brasil e não se torne brasileiro. Sim, interessa-nos que o português seja falado por mais de 200 milhões de pessoas na América do Sul.
9. O Brasil já aplica o Acordo Ortográfico e, ao contrário do que se diz, não o rasgou nem o rejeitou. Apenas prolongou o período de transição em que se podem utilizar as duas grafias, a antiga e a nova, que passou de 2012 para 2015. Aliás, todos os países de língua oficial portuguesa já ratificaram o Acordo Ortográfico. A única exceção é Angola que, mesmo assim, tem dado alguns sinais de querer rever a sua posição.
10. Finalmente, um dos argumentos mais repetidos é que não devemos escrever como os brasileiros porque somos portugueses. Ver telenovelas brasileiras, tudo bem. Ouvir cantores brasileiros, excelente. Ler romancistas brasileiros, nada contra. Admirar futebolistas brasileiros, sim senhor. Comer comida brasileira, é um gosto. Viajar para o Brasil, uma maravilha. Mas escrever como os brasileiros é que é mortal.  

28 de fevereiro de 2014

As ondas do Meco

Perdemos o valor das palavras todos os dias. Vivemos demasiados acontecimentos históricos e demasiados acontecimentos trágicos. Quando a tragédia surge, repetimos automaticamente que sim senhor, que foi uma tragédia. E seguimos em frente. Afinal, feitos históricos e tragédias trágicas estão ao virar de cada esquina. Mas naquela madrugada de dezembro foi mesmo uma tragédia que aconteceu. Seis estudantes morreram debaixo de uma onda no Meco. Nem se sabe bem ainda como nem porquê.
Sabe-se apenas que estavam de fim-de-semana praxista. Com flexões, pedras, capas negras e a colher de pau da praxe. Sobre a praxe não há muito a dizer. Não integra, não envolve, não ajuda. É coisa simples e só tem uma regra: o mais forte dispõe do mais fraco para rituais humilhantes. E nem é o mais forte, é o mais antigo, que a idade é um posto e devemos todo o respeitinho a quem anda cá há mais tempo. Afinal, a praxe até prepara para a vida, ensina que devemos obedecer aos mais velhos porque são mais velhos. Sem interrogar, sem questionar e sem duvidar. Aprende-se hoje que uma capa, uma batina e um qualquer título arraçado do latim dão carta-branca para abusos. Amanhã será um qualquer chefe engravatado que não se pode pôr em causa pela simples razão que não se pode pôr em causa. É a aprendizagem do conformismo e da submissão.
Há quem veja nas ondas do Meco um sinal de que temos poucas alternativas para quem quer construir a sua identidade e a pertencer a algo maior. E que não restaria muito mais do que embarcar num mundo de trajes negros, códigos secretos, alcunhas e objetos simbólicos. É verdade que a nossa vida coletiva é cínica e desdenhosa. Não valorizamos quem faz parte de uma juventude partidária ou quem é membro de uma organização religiosa que presta serviço comunitário. Preferimos a bazófia individual ao empenho coletivo. Mas também é verdade que rituais praxistas abusadores, detalhados e secretos estão muito para além de qualquer identidade saudável que se possa construir.
Há quem veja nas ondas do Meco um linchamento dedicado da única pessoa se sabe ter estado na praia naquela noite. Todas as teorias, suposições e deduções que circulam diariamente seriam uma variante de um novo abuso. As seis mortes seriam, quase de certeza, um resultado acidental. Um ritual estúpido para mortes estúpidas. Não valeria a pena vasculhar mais. Quando a morte de seis estudantes debaixo de uma onda é tratada com esta ligeireza, temos que pensar se devemos escolher cuidadosamente as circunstâncias em que morremos por acidente. Só assim teremos a certeza que, depois de estarmos mortos, se buscam esclarecimentos.     
E assim chegamos aos esclarecimentos da tragédia que aconteceu há mais de mês e meio. Desde o primeiro dia que é evidente que tudo teria que ser investigado ao mais ínfimo detalhe. Numa fria madrugada do dia 15 dezembro do ano passado, morreram seis pessoas numa praia com ondas enormes. Só isto bastava. Mas, em Portugal, o que basta nunca é suficiente. O Ministério Público, que devia investigar, demorou mais de um mês para se organizar. Só a 21 de janeiro é que a investigação ficou com a pessoa certa dentro do Ministério Público. E só agora se criou essa exuberância burocrática que dá pelo nome de equipa mista entre a Polícia Judiciária, Polícia Marítima, coordenada pelo Ministério Público. Quanto mais membros da equipa, menos responsabilidades existem por atrasos. Está certo.
O problema deste caso é o mesmo de sempre. Deixar que o julgamento de um eventual crime (que pode nem existir) se faça nos jornais e por pressão popular. Deixar que se façam leituras apressadas de acontecimentos graves. Deixar que os absurdos burocráticos tornem irrespirável a nossa vida coletiva. Onde era preciso uma investigação rápida e conclusiva, temos sucessivas notícias nos jornais com insinuações não provadas e fugas selecionadas de elementos da investigação. O que as ondas do Meco nos dizem é que se morre mal em Portugal.

31 de janeiro de 2014

O referendo mais cobarde do mundo

Os deputados do PSD decidiram na passada sexta-feira que se devia realizar um referendo sobre a coadoção por casais do mesmo sexo. A história é simples e deve ser contada por partes. Primeiro, a coadoção. Depois, o referendo.
Há ano e meio o PS apresentou um projeto de lei para permitir que, quando um dos elementos do casal tenha um filho biológico ou adotado, o outro elemento possa coadotá-lo. Isto significa passar a ser legalmente pai ou mãe da criança em causa. Com todos os direitos. E com todos os deveres. Passar a ser legalmente pai ou mãe e não substituir legalmente pai ou mãe. Pois a coadoção só seria possível se não houvesse nenhum pai ou mãe para substituir. Se houvesse, não poderia haver coadoção. 
A ideia surgiu porque há crianças nesta situação. Crianças que estão há anos a ser educadas por casais de pessoas do mesmo sexo. E que, se o pai ou a mãe biológicos ou que adotaram morrerem, podem ser retiradas à sua família. O que não sucederia se se tratasse de um casal com pessoas de sexo diferente, onde poderia haver coadoção. Portanto, esta lei queria resolver casos concretos, tratar de situações concretas, ajudar pessoas concretas. É raro, mas de vez em quando acontece, era uma lei para pessoas. Ou melhor, uma lei para famílias.
No fundo, a lei pretendia remover a orientação sexual como um factor discriminatório para negar a adoção nestes casos. Porque é mesmo isso que se trata: assegurar que, numa situação terrível, as crianças continuam a crescer na sua família. Onde estão a ser educadas sem problemas nem alarme social. Esta discriminação não faria (e não faz) qualquer sentido. Nem sequer é legalmente defensável. Daí que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tenha, há cerca de um ano, condenado a Áustria por não permitir a coadoção a casais do mesmo sexo. Exatamente o que a lei portuguesa viria agora permitir.
Mas não se pense que a coadoção seria automática e sem controlo. Tal como numa coadoção de um casal de pessoas de sexo diferente, a criança com mais de 12 anos teria que dar o seu consentimento e a coadoção teria que ser declarada por um Tribunal. O que permitiria analisar seriamente cada situação. A conclusão é que a lei proposta era ponderada, equilibrada, justa e, mais cedo ou mais tarde, teria que ser aprovada em Portugal. Nem que fosse através da condenação de Portugal pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como sucedeu na Áustria.
Já sabemos de onde surgiu a ideia da coadoção. Agora, temos que saber quando nasceu a ideia do referendo. Não nasceu no início do processo, quando foi apresentado o projeto de lei. Não nasceu quando foram recolhidos pareceres científicos sobre o assunto, favoráveis à coadoção. Não nasceu quando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou a Áustria por não admitir coadoção para estes casos. Não nasceu quando se gerou um consenso no Parlamento para aprovar o projeto de lei. Nasceu quando se aprovou o projeto de lei na generalidade, na primeira votação que houve sobre o assunto no Parlamento. Ou seja, nasceu quando se temeu que a lei pudesse ser aprovada. E com o único objetivo de impedir essa aprovação.                        
É por isso que o referendo que foi aprovado é tão confuso, ilegítimo e cobarde. Confuso porque tem duas perguntas diferentes. Uma para a coadoção, para as famílias que já existem. E outra para a adoção, para famílias que não existem. São matérias diferentes que não podem ser tratadas de maneira igual e embrulhadas no mesmo referendo. Discutir se duas pessoas do mesmo sexo podem adotar uma criança institucionalizada não é a mesma coisa que discutir a coadoção de uma criança que já tem uma família. Aliás, o mais provável é estas duas perguntas conjuntas não serem admissíveis segundo a lei do referendo.
Ilegítimo porque não é um assunto que exija a realização de um referendo. Não há posições extremadas, nem um debate público aceso. Não que esse seja o critério para haver referendos. Mas, os referendos, pela sua natureza de apenas aceitarem um sim ou um não, são perigosos e prestam-se a discussões demagógicas. E, por isso, justifica-se que apenas haja referendos de questões verdadeiramente discutidas. Como foi o caso da interrupção voluntária da gravidez ou da regionalização. Mas mais. Realizar um referendo sobre situações concretas, sobre famílias concretas, é mais do que ilegítimo. É imoral.
Acima de tudo, é o mais cobarde dos referendos. Cobarde porque foi apenas um estratagema inventado para evitar a aprovação de uma lei. Não se viu nenhuma discussão parlamentar sobre o assunto. Não se ouviram argumentos contra. Não se fez a votação final da lei da coadoção. Era nesta votação que quem era contra a coadoção se podia levantar e explicar as suas razões. É para isso que serve o Parlamento. Para discutir e para falar em representação dos eleitores. Não para devolver a palavra a esses eleitores porque dá jeito para impedir uma lei que, em circunstâncias normais, seria aprovada.
Mas a maior cobardia é mesmo utilizar um assunto sensível para algumas famílias para se poderem exibir credenciais impecáveis e direitinhas a favor da família. Não destas famílias reais e concretas. Mas das famílias ideais e imaginadas. Foi fácil. Bastou pôr as convicções à porta do Parlamento. Bem fechadas num cacifo para saírem cá para fora quando passar a borrasca e for apropriado. Abstenções, declarações de voto acompanhadas da votação a favor do referendo, saídas do hemiciclo no momento da votação e alegações que o referendo é caro, não chegariam aos calcanhares de um único deputado que se tivesse levantado e dito que era contra a coadoção. É que, enquanto este teria as suas razões, aos outros, nem as razões lhes pertencem.   

20 de janeiro de 2014

O que devemos a Eusébio

Eusébio deu-nos muito. Mais do que lhe demos a ele. Eusébio deu-nos glória. Uma glória popular e genuína. Para todos. Não é pouco. E não espanta. Se ainda hoje quase não temos tradições desportivas, quanto mais nos anos 60. Só a equitação e a vela davam medalhas olímpicas por essa altura e até uns anos mais tarde. Equitação e vela, desportos caros e elitistas. Eusébio era outra coisa. Falava uma linguagem que todos compreendiam e podiam tentar imitar. A linguagem da bola de trapos com que ele começou a falar no bairro miserável onde cresceu em Moçambique. E foi com uma simples bola que foi o herói desportivo de classe mundial que nunca tínhamos tido.
Deu-nos um imenso orgulho. Completo, esvoaçante, veloz, atlético. Sem nunca desistir. O terceiro lugar no Mundial de 1966 quase que sabe a primeiro por isso. Por não nos termos impressionado com o Brasil de Pelé. Por termos virado o jogo com a Coreia do Norte marcando cinco golos. Por Eusébio ter saído do campo a chorar quando perdemos com a Inglaterra nas meias-finais. E por termos derrotado a temível União Soviética e, provavelmente, o melhor guarda-redes de todos os tempos, Yashin, no jogo para o terceiro lugar. É acrescentar uma Taça dos Campeões Europeus pelo Benfica e mais três perdidas. Ou o prémio do melhor jogador da Europa e ter sido duas vezes o melhor marcador europeu. Eusébio era o futebol em Portugal até há muito pouco tempo.
Se era o futebol em Portugal, no resto do mundo Eusébio era Portugal. Não esqueço o que me aconteceu há uns 15 anos numa estação de comboios perdida no leste da Hungria. Quando o chefe da estação de comboios, e único funcionário, soube que eu era português, a resposta foi Eusébio. Sem mais palavras. Tinha-o visto jogar. Lembrava-se. Melhor que Pelé, dizia. Melhor que muitos dos da altura, acrescentava. Um grande, sentenciava.
Há quem diga que perdemos com a partida de Eusébio. Perdemos quando os talentos geniais se desperdiçam e não passam da sombra. Com Eusébio, ganhámos. Todos. Eusébio não cumpriu apenas. Eusébio superou tudo. A si e a todos. E foi o menino pobre de uma das colónias portuguesas que foi o melhor jogador africano de todos os tempos, como declarava ontem o obituário do jornal inglês Guardian. Demos-lhe muito. Havia uma admiração imensa por Eusébio. Das duas vezes que me cruzei com ele, pude ver toda a deferência que o rodeava, a amabilidade portuguesa quase tímida com que todos falavam com ele.     
Mas não demos o suficiente. Eusébio devia ter podido sair do país no auge. Eusébio devia ter podido enriquecer onde quisesse. Eusébio devia poder ter chegado, se calhar, ainda mais longe. Eusébio não devia ter sido usado e abusado por um regime político. Eusébio, o mulato moçambicano, foi convertido em símbolo de uma pretensa harmonia racial excepcional que só havia em Portugal. Isto no país que só em 1961 aboliu leis específicas para os habitantes das colónias que, até então, não eram bem cidadãos e que mantinha uma segregação racial semelhante à dos outros países colonizadores. E no país que até hoje não tem um deputado negro. Ficámos a dever a Eusébio uma vida mais livre. Não é pouco. É mesmo muito.    
O King morreu. Viva o King. Trágico seria que o Rei tivesse partido sem deixar descendentes. Mas deixou. Houve vários que tentaram. Mas só um é que é verdadeiro e da mesma ordem de grandeza. A mesma vontade de ganhar, a mesma luta até ao último segundo, a mesma alegria em cada jogo de Cristiano Ronaldo comprovam a descendência. E onde um ficou, o outro partiu. Onde um ficou às portas de ser ainda maior, o outro é gigante. Onde um foi usado, o outro tem a vida que quer. Como em todas as boas histórias, gosto de acreditar que se escreve direito por linhas direitas e que Cristiano Ronaldo é filho de um Portugal democrático e que é tudo o que Eusébio podia ter sido (com as distâncias da época, claro).
Os grandes não morrem. Mas Eusébio não era apenas um grande. Era o King. O maior. Surge um a cada 50 anos. Já temos o próximo. Mas sem o King nunca existiria mais nenhum. Não é possível esquecer. Por isso, não me despeço do Eusébio. Ele ainda vai andar por cá muitos anos.            

6 de janeiro de 2014

Cronista em greve

No uso do direito previsto na Constituição, enquanto ainda existe, declaro greve ao comentário, à observação, à interpretação e até à ironia. A razão é que a realidade, como ela é, começa a dispensar comentários, observações, interpretações e até ironias. E quando a realidade começa a não precisar de enquadramento, o cronista empenhado fica sem ofício. No fundo, é apenas mais um episódio da progressiva substituição de trabalhadores qualificados por processos automatizados. Só que, neste caso, é a força das coisas que expulsa o cronista. Se a realidade fala de forma tão cristalina, só resta ao cronista enfiar o comentário no saco. Portanto, farei greve até que a realidade se acalme.
Três exemplos. Ainda esta semana, no dia de aniversário do cronista (a realidade não tira férias), Eanes foi homenageado por um grupo de saudosistas das virtudes éticas do político que não quis ser marechal e que abdicou de um milhão em retroativos que lhe eram devidos. Não tenho a mais pequena das dúvidas sobre a seriedade, honestidade e dedicação de Eanes. Tenho todas as dúvidas sobre o percurso político de Eanes. Foi Eanes que foi formando sucessivos e falhados governos de iniciativa presidencial, desvirtuando o carácter parlamentar do regime. Mas também foi Eanes que embalou o Conselho da Revolução, verdadeiro órgão militar que vigiava o Governo, e que só foi extinto em 1982. E foi Eanes Presidente que inspirou, fundou e acarinhou um partido político, como se a presidência da república servisse para criar partidos. Homenagear Eanes pelo que ele é e não pelo que fez enquanto político diz muito sobre os tempos que vivemos. Os políticos já não servem. Ou, em ligeira variação, as ideias já não contam. Quando ansiamos por homens sérios sem prestar atenção ao que eles defendem, estamos próximos de desejar homens providenciais, não importando em que acreditam. Cá está a realidade a entrar sem pedir licença e a mandar o cronista dar uma volta.
Discute-se o salário mínimo. E nas palavras do realista César das Neves, um possível aumento do salário mínimo é prejudicial aos verdadeiros pobres, aqueles que não estão representados pelos políticos. A ideia é que a mínima subida do salário mínimo irá impedir que se criem novos postos de trabalho, pois o empregador não consegue suportar esses custos. E também que o salário mínimo tem vindo a aproximar-se do salário médio, o que é prejudicial para o mercado de trabalho no seu conjunto. Há quem defenda que seria até mais eficiente atribuir subsídios como complemento do salário mínimo para não desvirtuar o mercado de trabalho. O problema é que a sacana da realidade parece apontar outra direção. Na Alemanha, Merkel, o expoente máximo da esquerda europeia, acaba de aceitar o salário mínimo para os trabalhadores alemães com o valor de cerca de € 1440/mês. Parece que, em 2012, havia na Alemanha oito milhões de trabalhos precários pagos em valores semelhantes aos do salário mínimo português (€ 485/mês). Não parece que Merkel queira condenar oito milhões de pessoas ao desemprego. Mas viajemos para a Bélgica, onde o Primeiro-Ministro afirmou esta semana que há portugueses a trabalhar na Bélgica e a ganhar um salário mensal de € 346, bem abaixo do salário mínimo em Portugal. Defendeu que esses salários eram inaceitáveis. Mas disse mais. Disse que salários tão baixos põem em causa a própria economia belga que, naturalmente, não quer estar baseada em salários tão baixos. Alemanha e Bélgica, dois países pouco civilizados, como se sabe, ousam contrariar as impecáveis doutrinas económicas sobre o salário mínimo. As notícias falam por si, o cronista pode ir relaxar para outra banda. 
Debateu-se com elevação e argumentos onde é que a austeridade foi mais agressiva, se em Portugal, se na Irlanda. João Miguel Tavares e Hugo Mendes trocaram argumentos, quadros, gráficos e ideias. Creio que Hugo Mendes conseguiu provar com boas justificações que em Portugal, em apenas três anos, houve uma austeridade de € 24 mil milhões. E que na Irlanda, em cinco anos, houve uma austeridade de €28 mil milhões. E que a austeridade é pior em Portugal porque a economia portuguesa é mais dependente da procura interna, enquanto a economia irlandesa é mais aberta ao exterior. Claro que a Irlanda não ter embarcado em viagens para além da Troika também ajudou. Esta discussão continuou e passou subtilmente para outra dimensão: que país, Portugal ou Irlanda, é que estava melhor preparado para sofrer austeridade em 2007? E por aqui se continuou alegremente. Não duvido que seja importante perceber este ponto. Mas já não se fala é do ponto essencial: a Irlanda reestruturou a sua dívida. Isso mesmo. Cerca de 28 mil milhões de dívida. Que antes tinham juros de 8% e agora passaram a ter de 3%. E em que o primeiro grande pagamento só terá lugar em 2038 e o último em 2053. Perante isto, que pode comentar o cronista quando o Governo defende com todo o vigor que nunca, jamais, em tempo algum poderá haver uma reestruturação da dívida portuguesa?

29 de novembro de 2013

Crítica do empreendedorismo puro

- Boa tarde. É aqui a entrevista para o cargo de empreendedor?
- É sim. Trouxe o seu certificado de empreendedor?
- Claro. Estou registado como empreendedor de nível VII e inscrito na Ordem dos Empreendedores.
- Então aguarde um momento por favor.
- Posso empreender enquanto espero?
- Claro. Empreenda naquela sala à direita por favor.
- Muito bem. Vou rever os cinco passos para criar um negócio de sucesso.
- Podemos então começar. Vejo pelo seu CV que tem uma longa experiência de empreendedorismo.
- Verdade. A minha paixão começou na escola primária, nas aulas de empreendedorismo. Depois tive um estágio para empreendedores no ensino secundário e tirei o curso técnico-profissional Empreender Mais. Prossegui estudos na Academia de Empreendedorismo onde tirei o curso de Empreendedor. Mas não me chegava. Tenho este bichinho do empreendedorismo. Então, resolvi tirar um mestrado sobre os Novos Desafios do Empreendedorismo e doutorei-me com uma investigação dedicada ao Auto-Empreendedorismo.
- E depois? Começou a criar negócios?
- Criar negócios? Desculpe mas não tirei curso de negociante. Isso não é para mim. Eu sou mais empreender.
- Bom, mas o nosso cargo de empreendedor consiste em gerar novas ideias de negócio a partir de um pequeno montante de capital. Sente-se preparado para isso?
- Desde que possa empreender, tudo bem. Ainda agora estava a empreender antes da entrevista começar. Consigo empreender em qualquer lugar e em qualquer hora. É um jeito inato que tenho para isto. Por exemplo, consigo dizer-lhe, aqui e agora, quais são as sete desvantagens de empreender sem rede. Ou então quais os 10 mandamentos do verdadeiro empreendedor. E, para rematar, consigo recitar-lhe por ordem alfabética todos os gurus do empreendedorismo.
- Ahh deixe estar. Mas olhe, tem alguns conhecimentos de contabilidade, de estratégia comercial, de gestão?
- Olhe, eu sou um empreendedor. Se não sabe reconhecer um empreendedor quando está sentado à frente de um, o problema é seu.  Sou um profissional altamente qualificado em ter uma atitude positiva, motivadora e confiante. Além disso, possuo características absolutamente excecionais de comunicação de mensagens para plateias alargadas. Se quiser alguém para empreender, e quando eu digo empreender é empreender a sério, tem-me aqui. Senão, passar bem.
- Tenha calma. Mas via-se a gerir uma empresa?
- Nem acredito que me está a perguntar isso. Para quem procura uma pessoa para o cargo de empreendedor, acho que não percebe nada do assunto. Esta entrevista acaba aqui.

22 de novembro de 2013

Manual prático de criação de rendas na Educação

Primeiro passo - Abra um colégio privado. Se possível, em zonas onde há escolas públicas. Assim, tem a certeza que tem alunos. Dê um saltinho à zona de Coimbra que lá sabem bem como se faz. Forneça todos os serviços que a escola pública não consegue fornecer e que lhe permitem dizer que o seu colégio se diferencia pela qualidade. Comece pelo transporte privado e acabe nas aulas de karaté. Para assegurar que corre tudo bem, diversifique o risco. Não, não, não. Não ligue a quem lhe diz que não pode ter uma clínica agregada ao colégio e que também não pode vender cafés. Iniciativa privada é iniciativa privada. Portanto, pode tudo. Só não pode não ser empreendedor educativo. 
Segundo passo - Celebre um contrato de associação com o Estado para que este lhe pague pelos alunos que a escola pública não tem lugar. Agora, pergunta "Mas eu abri o colégio privado numa zona com escolas públicas meio vazias?". Você de facto não percebe nada disto, pois não? Ainda bem que comprou este Manual que foi especialmente escrito para si. A ideia é que o colégio privado substitua a escola pública. Você quer ou não quer ter rendas? Se lhe perguntarem porque é que tem um colégio numa zona com escolas públicas meio vazias, responda com serenidade e olhar compungido: "Os meninos têm direito a ser muito bem tratados como são aqui no nosso colégio". Se não conseguir dormir à noite com esta ilegalidade, contrate um alto funcionário do Ministério da Educação como consultor para dormir mais descansado.
Terceiro passo - Selecione cuidadosamente quem admite no colégio. Outra pergunta: "Mas não é suposto eu admitir toda a gente?" Você é quase um caso perdido. Acha que lhe interessa admitir alunos com dificuldades ou com um enquadramento social problemático ou com garantias que não vão ter boas notas? Pois é, não interessa nada. Admita um ou outro com ação social escolar, quando muito. E não se esqueça dos exames e dos rankings. Os jornais ordenam as escolas pelos resultados de alguns exames sem ter em conta outros factores como o contexto social e cultural. Portanto, carregue na preparação desses exames e esqueça tudo o resto.
Quarto passo - Aguarde que um Ministro declaradamente contra a escola pública tome posse. Deixe passar uns anos a marinar. Espere que se instale o debate sobre o cheque-ensino. Dê entrevistas e aprenda a dizer liberdade de escolha a uma velocidade de meia sílaba por segundo. Passa bem na televisão. Aguarde serenamente a entrada em vigor do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, o que até já aconteceu no passado dia 5 de novembro. Com este novo Estatuto, o Estado passa a poder celebrar contratos de associação sem restrições, quer haja escolas públicas na zona, quer não. Já viu como o colégio que abriu em flagrante violação da lei já está legal? Agora que já dorme descansado, também já pode despedir o alto funcionário do Ministério da Educação contratado como consultor.
Quinto passo - Com o seu colégio legalizado pode abrir mais colégios à medida que forem fechando escolas públicas. Terá que admitir alguns alunos com o cheque-ensino mas serão sempre poucos, pois já se sabe que o seu colégio não tem lugares ilimitados. Mantenha os critérios de seleção descritos no terceiro passo. Para celebrar novos contratos de associação e abrir novos colégios, readmita o alto funcionário do Ministério da Educação como consultor. Previna o futuro e tenha a seguinte cábula à mão para debitar com um ar indignado para jornalista anotar: "Fiz avultados investimentos para ter este colégio a funcionar e agora querem acabar com o contrato Vivemos num Estado totalitário sem liberdade de escolha. Se o contrato acabar, o colégio vai ter que fechar e é a educação destas crianças que fica posta em causa". Goze bem as suas rendas por muitos e bons anos. E não se preocupe se o Estado acaba por gastar muito mais para ter piores resultados.  
Epílogo: Quando reparar que as verbas para o ensino especial diminuem e as verbas para os seus colégios aumentam, pestaneje. Não é nada consigo.

PS: Este Manual foi parcialmente baseado na reportagem da TVI sobre este assunto transmitida no passado dia 4 de novembro.

15 de novembro de 2013